A "obesidade" como indicador de risco: será fiável?
Saúde

A "obesidade" como indicador de risco: será fiável?



A massa corporal, peso, tem sido usada desde sempre como critério de risco e do grau de obesidade, um indicador indirecto da acumulação de gordura no corpo. Parece haver uma obsessão pelo peso, em grande parte estimulada pelos próprios agentes de saúde, sejam nutricionistas ou médicos, que ainda baseiam a sua prática no velhinho IMC. É verdade que em vários estudos epidemiológicos ele tem-se revelado associado a várias doenças crónicas como a diabetes, cardiovasculares, cancro, etc. Mas epidemiologia e clínica são coisas bem diferentes. Será um bom indicador do estado metabólico e o foco primário da intervenção?

O IMC, índice de massa corporal, é no fundo uma medida de densidade (massa corporal/altura ao quadrado) que é recomendada pela OMS para o diagnóstico de obesidade e risco de doenças associadas. Mas na verdade, lentamente assistimos a uma transição desse conceito obsoleto para uma maior importância da percentagem de gordura e, principalmente, distribuição dessa gordura. É reconhecido que a obesidade abdominal acarreta maior risco e está na base da Síndrome Metabólica, uma condição de alto risco cardiometabólico cada vez mais comum e mais precoce.



Existem diferenças substantivas entre o tecido adiposo visceral e subcutâneo, sendo este último entendido como "inerte" e um depósito estável da gordura. A adiposidade subcutânea, como é exemplo a gluteo-femural nas mulheres, tem sido vista como protectora e um padrão "metabolicamente saudável de obesidade, embora seja ainda controverso entre a comunidade científica. Um estudo recente com uma coorte Espanhola encontrou um risco de 700% em desenvolver diabetes em 11 anos em indivíduos "metabolicamente saudáveis" [link]. Mesmo sendo menor e mais tardio do que para a adiposidade abdominal, trata-se de uma magnitude que não pode ser desprezada. Segundo estes resultados, existem dois grupos de obesos: os que têm problemas de saúde, e os que vão ter.

É possível que este aumento do risco com o tempo quando o padrão de obesidade é subcutâneo se deva a uma transição para um perfil visceral. Alguns autores sugerem que os adipócitos viscerais são reservas secundárias de gordura, para quando é atingido o "limite" dos adipócitos subcutâneos, em grande parte definido pela genética. Pessoalmente não me identifico com esta teoria, acreditando mais numa resposta a disfunções metabólicas que levam a uma acumulação preferencial de gordura na região abdominal: resistência à insulina e cortisol.

Os adipócitos viscerais são diferentes dos subcutâneos em vários aspectos. São mais sensíveis ao cortisol e mais resistentes à insulina. Enquanto que as células subcutâneas precisam do estímulo da insulina para reservar gordura, o mesmo não se passa com os viscerais, naturalmente mais independentes da hormona para essa função. O cortisol assume aqui grande parte das acções da insulina, menos uma: inibição da lipólise. Além disso, os adipócitos viscerais expressam muitos receptores beta-adrenérgicos e poucos alfa-adrenérgicos, respondendo de forma robusta ao efeito catatólico das catecolaminas. Isto significa que o tecido adiposo visceral é muito sensível à lipólise, ou seja, é fácil libertar gordura desta reserva, especialmente com exercício físico [link]. Apesar de pernicioso é o primeiro a desaparecer, e isso são boas notícias.

Se o tecido adiposo sofre lipólise, os ácidos gordos libertam-se para a circulação. Mas e se nós não precisarmos deles ou se simplesmente não os conseguirmos usar? Por outras palavras, o que acontece quando há um excedente de ácidos gordos relativamente à necessidade energética ou quando a alternância de substratos é anormal? Entramos em ciclos fúteis de lipólise e re-esterificação, e os ácidos gordos voltam a casa. Ou pior, começam a exercer um efeito tóxico noutros tecidos, não preparados para lidar com cargas tão grandes de gordura, nomeadamente o músculo e fígado.

Uma das diferenças mais marcantes entre o tecido adiposo visceral e subcutâneo é o local para onde os ácidos gordos (e outras substâncias) são drenados. Enquanto o subcutâneo drena para a circulação periférica, o visceral liberta para a veia porta que direcciona para o fígado. O fígado recebe uma carga massiva que excede a sua capacidade e provoca uma disfunção no metabolismo normal do órgão, que resulta em resistência à insulina e fígado gordo. Tendo em conta o papel central que o fígado exerce na homeostase, partição energética, e perfil lipídico, todo o metabolismo acaba por ser severamente afectado por esta disfunção. 

Mas as diferenças entre os tecidos adiposos não se limitam ao fluxo de ácidos gordos, mas também à produção de certas substâncias com impacto no metabolismo - as adipocinas. O tecido adiposo visceral apresenta normalmente uma maior infiltração de células imunitárias pró-inflamatórias que produzem e libertam citocinas para a circulação. Estas substâncias, em particular o TNF-alfa, IL-1beta e IL-6, fazem a ponte entre a obesidade e o risco de disfunções cardiometabólicas, explicando também o maior risco aparente com um padrão abdominal de acumulação de gordura.

Dito isto, entendemos que é diferente ter uma predominância de gordura visceral ou subcutânea, ou igualmente mau ter muita de ambos. Ora, o peso e o IMC não são sensíveis a esta distribuição. Um artigo de perspectiva publicado recentemente na Science alerta precisamente para esse problema [link]. Os critérios que se baseiam no peso são péssimos indicadores clínicos de risco. Podem ser usados a nível epidemiológico, mas na prática de consultório são completamente inúteis. Nada dizem sobre o perfil de distribuição da gordura e o risco metabólico do indivíduo.

Mas o mais interessante neste artigo que vos falo, e não vos estaria a escrever isto se não o fosse, é que os autores falam na relação gordura/músculo como um bom indicador do estado metabólico individual. Se segue este blog de perto, já assume certamente o papel importantíssimo que o músculo tem a nível metabólico e na partição energética. É a nossa "fornalha" por excelência e um local onde a glicose é reservada e gasta quando necessário. Quanto mais massa muscular tiver, mais fácil se torna gerir os níveis de gordura no corpo e maior a capacidade de normalizar a glicémia [link]. Mas o músculo é mais denso do que a gordura. Um culturista pode ser obeso segundo os critérios convencionais que se baseiam no IMC. Eu próprio tenho excesso de peso, mesmo abaixo dos valores de corte geralmente assumidos para a % de gordura. Há algo de muito errado e enganador com o IMC.

Quem vem ter comigo espanta-se muitas vezes por não me focar no peso ou no IMC como indicador da evolução. Mas como vimos, não se tratam de boas ferramentas, especialmente quando as estratégias implementadas passam por aumentar a massa muscular e optimizar a função metabólica. Além disso, não é raro encontrar pessoas com peso perfeitamente normal e excesso de gordura relativa ao músculo. Para mim são tratados como obesos, sujeitos à mesma carga de risco. Ponto final. O fenómeno da "obesidade de peso normal" é um flagelo na sociedade actual, pautado pelos maus hábitos alimentares, sedentarismo, ou uma concepção errada do tipo de exercício físico que de facto melhora a saúde. Sem mais rodeios, trabalho de força e alta intensidade.



É altura de abandonar de vez a concepção ultrapassada de obesidade como factor de risco. Não tem a ver apenas com peso, tem sim a ver com o metabolismo, padrão de adiposidade, e relação músculo/gordura. Existem formas mais robustas e úteis de diagnóstico, mas outras precisam-se com urgência na prática clínica massificada. O músculo desempenha um papel central e merece ser bem tratado. Infelizmente, as práticas convencionais para perder peso desprezam e sacrificam demais esta variável, o que só poderia levar a um fracasso a longo prazo, que é aliás o destino mais comum dos programas de emagrecimento.

Artigo complementar:
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