A Dieta dos Nossos Ancestrais: uma breve revisão
Saúde

A Dieta dos Nossos Ancestrais: uma breve revisão





Como vos dei conta, foi publicado recentemente no Brasil um livro sobre a dieta Paleo: "A Dieta dos Nossos Ancestrais". Muito gentilmente o autor, Caio Augusto Fleury, enviou-me um exemplar autografado que li com muito gosto. E como prometido, aqui fica a minha breve revisão.

Veja também: 
A evolução da dieta e implicações na saúde humana
A dieta Paleolítica na prevenção de doenças cardiovasculares 

"A Dieta dos Nossos Ancestrais" divide-se em 12 capítulos:

1 - Onde tudo começou
2 - Movimento Paleo/Primal
3 - Estudos observacionais feitos em populações isoladas
4 - Perguntas e respostas sobre a dieta dos nossos ancestrais
5 - Porque temos de reduzir o consumo de grãos e farinhas processadas
6 - Efeitos do açúcar e das farinhas sobre o diabetes e a Síndrome Metabólica
7 - O perigo das dietas ricas em carboidratos de alta carga glicémica
8 - Benefício das gorduras boas e da redução de carboidratos refinados
9 - Plano para 21 dias
10 - Suplementos: vitaminas e minerais essenciais
11 - Carnes orgâncias
12 - Receitas para a dieta dos nossos ancestrais

Para quem está familiarizado com o conceito da dieta Paleolítica, este livro não traz nada de novo. Poderá ser no entanto uma boa primeira abordagem, especialmente para quem não domina a língua inglesa. São transmitidos os fundamentos evolucionistas da dieta, muito ao estilo do Dr. Cordain. Com alguma pena não vi devidamente explorada a questão da descoberta do fogo, que considero um marco importantíssimo na história evolutiva da nossa espécie. Com o cozinhar dos alimentos tornou-se possível aceder a mais nutrientes, energia e reduzir o risco de intoxicação. Alguns autores consideram mesmo que só assim foi possível a nossa encefalização. Não obstante, são dadas luzes sobre a "Expensive Tissue Hypothesis" e "Optimal Foraging Theory" que também são muito aceites no meio académico.

Se pudesse resumir esta primeira parte numa frase seria: 

"Nada em nutrição faz sentido se não for iluminado à luz da evolução"

É mais do que evidente a associação que o autor faz entre a Paleo e a dieta low-carb na sua linha Taubiana, o que eu lamento. Apesar de compreender os motivos, que se prendem com a necessidade de arranjar teorias elegantes que justificam a restrição dos hidratos de carbono, é para mim complicado aceitar que quem manda comer salsichas fritas com ovos e bacon possa ser incluído neste movimento. A dieta Paleo tem bases mais que suficientes para se descolar da corrente de Atkins, o que a meu ver deve ser feito. E quem vos diz isto é, como sabem, ele próprio um defensor da restrição moderada em hidratos de carbono e exclusão total de alimentos processados e açúcares refinados.

Outros conhecidos autores são também referenciados, dos quais destaco o próprio Cordain, autor do bestseller "The Paleo Diet" e Staffan Lindeberg, este último muito conhecido pelos seus estudos com populações indígenas de Kitava. E ainda bem que Caio fala em Lindeberg, muitas vezes posto em segundo plano na corrente Paleo já infectada com o vírus Taubiano. Segundo consta, quando Gary Taubes estava a escrever o seu livro "The Diet Delusion/Good Calories Bad Calories" ele contactou diversos autores que estudaram populações primitivas e isoladas. Lindeberg foi um deles mas, curiosamente, o seu depoimento não foi incluído no livro. Comiam hidratos de carbono a mais, e isso não dava jeito nenhum… E já que falamos em Lindeberg, aproveito para corrigir a sua nacionalidade. Ele é sueco e não suíço como vem no livro. E Lund é na Suécia. Para além dos já mencionados, as pesquisas de Weston Price com populações primitivas não são esquecidas. Somos brindados com uma descrição interessante sobre esses trabalhos fundamentais para se entender os alicerces da Paleo.

É dado grande ênfase, e bem, à questão dos cereais que dominam a alimentação moderna. Os argumentos são os habituais mas o autor preferiu focar-se no lobby, subsidiação Estatal da produção e preço, que são, como sabemos, algumas das  principais razões para que hoje a dieta se baseie em grãos e farináceos. O autor fala-nos também do glúten e das exorfinas presentes no trigo - proteínas pouco digeríveis que actuam como opióides no organismo. O logro dos cereais integrais não é esquecido embora, neste contexto, tenho detectado um erro grosseiro. Os cereais não têm lecitinas. Têm sim lectinas. Uma vez que a descrição está correcta para estas últimas, acredito que tenha sido uma gralha da edição.

É dedicado também um capítulo inteiro ao papel que o açúcar e farinhas terá na epidemia de Síndrome Metabólica. Mas para quem está familiarizado com os trabalhos de Taubes, Lustig e Guyenet não há nada de novo (exceptuando a língua, e Caio deve ser louvado por isso). Gostei da explicação para a a teoria da recompensa, food reward, que não é ainda tão aceite entre a comunidade científica, talvez por envolver mecanismos não totalmente conhecidos e complexos. De qualquer forma, o leitor poderá descobrir mais sobre ela no blogue do investigador Stephan Guyenet, o Whole Health Source.

Este papel que os açúcares e farinhas terão na diabetes e Síndrome Metabólica é explicado em grande parte pelo índice e carga glicémica. Apenas um pequeno lapso na fórmula de cálculo da carga glicémica, pois esqueceram-se de dividir o quociente por 100. Aqui é introduzida também a questão do cancro que é explorada à luz da teoria de Klement - tumores alimentam-se e crescem sustentados pelo açúcar, uma vez que são células glicolíticas obrigatórias e necessitam de factores de crescimento relacionados com o metabolismo dos mesmos.
A inibição de efectores da via insulínica é um tratamento promissor para o cancro
Uma dieta low-carb hiperproteica  reduz a incidência e progressão do cancro

Depois deste enquadramento teórico da dieta paleolítica, o autor faz-nos uma proposta de plano para 21 dias. Segundo ele, 21 dias é o tempo necessário para começar a ver resultados e nos "esquecermos" dos alimentos que ingeríamos habitualmente. São propostos dois planos para o leitor: um plano de transição lenta, e outro a mergulhar de cabeça na "Dieta dos Nossos Ancestrais".Não vou obviamente detalhar, para isso terão de comprar o livro :), mas apenas fazer algumas considerações:

- Iogurtes e queijo a mais. Sejam ou não eles orgânicos e provenientes de leite crú, a introdução de lacticínios é discutível. E nem por um momento o autor nos fala nessa questão e nas diferenças entre o leite de vaca, cabra e ovelha. Nota-se alguma influência de Mark Sisson, bem mais liberal do que Lorain Cordain a este respeito.

- Todos os cereais são excluídos, incluindo a aveia. Como sabem eu coloco a aveia num patamar ligeiramente diferente dos outros 3 com glúten e considero também que o arroz de grão longo pode fazer parte de algumas dietas com objectivos específicos, como de atletas por exemplo.
Leia também: A aveia é Paleo?

- A sugestão do autor é limitar o consumo de hidratos de carbono a 150 g por dia no máximo. Apesar dos condicionamentos específicos de alguns grupos, nomeadamente atletas, é um tecto que concordo e que se aplica à maioria das pessoas.

- As leguminosas são permitidas com moderação nesta dieta e eu concordo. Apenas lamento não ter sido abordada a questão das lectinas e das formas de contornar o problema (cozinhar à pressão). Da mesma forma nada nos é dito sobre as solanáceas e da sua toxicidade.

- Tenho alguma resistência a aceitar afirmações como "todos somos geneticamente destinados a ser magros se não consumirmos grãos". Não é assim tão simples…

- Entre 45 e 75 % da dieta deve, segundo o autor, ser constituido por alimentos derivados dos animais, especialmente carnes gordas. Apesar de ser aconselhado o consumo de carnes orgânicas e de animais alimentados a pasto, a justificação passa essencialmente pelo perfil mais favorável de ácidos gordos essenciais. No entanto, a questão das toxinas que se acumulam no tecido gordo dos animais não é mencionada, o que a meu ver é um dos problemas mais sérios neste tipo de regimes. Obviamente que esta questão é minimizada com as carnes orgânicas que o autor, e bem, recomenda.

- A importância do pequeno-almoço terá de ser questionada numa dieta Paleo. O autor segue o pensamento corrente de que a primeira refeição do dia é essencial. Ora num tempo em que não era possível conservar alimentos e que tudo tinha de ser recolhido da natureza, não sei até que ponto haveria lugar para essa refeição imediatamente após acordar.

- Chocolate com mais de 55% de cacau é aceitável? Acho muito pouco qualquer coisa abaixo dos 70%, preferencialmente 80%.
Leia também: O poder do chocolate

Gostei do facto de o autor enfatizar não só a dieta, mas também a importância da actividade física, exposição solar (vitamina D), sono e actividades lúdicas anti-stress. Em relação a esta última já vos tenho falado um pouco aqui no blogue:
O mistério de Roseto 
O stress e as doenças cardiovasculares: lições do oriente 
A maldição do número 4 e o efeito Baskerville

O exercício físico é incontornável num estilo de vida Paleo, preferencialmente de elevada intensidade. O autor sugere um mix de actividades baseadas em treino aeróbio, sprints e força alicerçado em 4 movimentos básicos: flexão, barra, agachamento e prancha. Segundo ele, estes movimentos reflectem aquilo que seria a vida dos nossos ancestrais.

Se é interessado por estas questões sugiro também a leitura do artigo "A evolução da dieta e implicações na saúde humana".

Independentemente dos diferentes pontos de vista que tenho em algumas questões, considero este livro uma boa introdução à Paleo e recomendo-o a todos aqueles que estão menos familiarizados com o conceito. Foi muito positivo ter visto pela primeira vez esta questão exposta na nossa língua e espero que seja um incentivo ao debate. Aceitando ou não, e sabem que sou muito crítico em relação ao que a Paleo se tornou, esta dieta baseia-se em princípios lógicos e elegantes que não podem simplesmente ser ignorados.

Obrigado Caio por este livro.



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