Saúde
A TROUXINHA DAS CUÉCAS
Escreví o texto abaixo há uns sete anos:
Antes de ser operado, dois assistentes do cirurgião conversaram comigo a respeito dos riscos: morrer na mesa ou logo depois (negligível), risco disso, risco daquilo e risco de ficar incontinente. Haveria maior probabilidade de incontinência logo depois da cirurgia, que decresceria com o tempo. Incontinência de estresse, definiu o cirurgião. Porém, o câncer era mais sério do que se pensava: o índice Gleason, que mede a agressividade, 3+4, era alto; havia penetração microscópica da cápsula. Fiz radiação suplementar (que aumentava os riscos de incontinência) durante cinco semanas. Durante esse tempo, usei um saco plástico, que não me impedia de fazer nada, inclusive musculação – de calças compridas, claro. A incontinência deveria terminar em algumas semanas ou meses, mas não terminou. As estatísticas diziam que, depois de ano e meio, quase ninguém recuperava o controle. A incontinência deprime e envergonha homens e mulheres. Eu passei por situações extremas por causa dela. Uma foi anedótica de tão trágica. Como estaria fora todo o dia, levei o maior saco de plástico, com o qual eu poderia acumular muito xixi e ficar mais tranquilo. A bolsa era amarrada na côxa e ligada por um tubo com um bocal afixado no Old Glory. Eu esperava no escritório da companhia de corretagem, - um bom momento para esvaziar o saco plástico que estava tão cheio que incomodava. Porém, ao abaixar as calças o bocal se soltou, e juntamente com o tubo, virou uma serpentina metralhando xixi para todos os lados. Trinta segundos depois eu, minha roupa, e o banheiro estávamos totalmente molhados. Sentei na privada e pensei em enxugar, porém o papel higiênico do banheiro mal daria para começar. O que fazer (Lênin, sempre êle, nas mais estranhas circunstâncias)? Pensei em ir à recepcionista, pingando, e confessar o crime. “Moça: acabo de urinar o banheiro inteiro.” Imagino o comentário doloroso, pós-inspeção do local: “mas, nas paredes também?” Pensei em esperar, sentadinho e molhadinho no banheiro, que o escritório fechasse para sair na calada da noite. Porém, mesmo se ninguém desconfiasse daquele banheiro fechado por dentro, eu poderia ficar trancado até o dia seguinte ou ser percebido pelo vigia como um ladrão. Pensei em uma alternativa mais pícara: poderia, também, lembrando travessuras da juventude, simplesmente sair andando, nu e digno, entrar no carro e ir para casa...de óculos. Não vou dizer o que fiz. Quem manda ser curioso?
Outras instâncias foram mais dolorosas. Numa, eu ia participar de uma reunião no Correio Braziliense, para planejar e, talvez, lançar o que viria a ser o Paz no Trânsito. Fui no meu carro, mas fiquei preso no trânsito. Aguentei até onde pude mas, no meio de uma avenida ensolarada, acabei sucumbindo com a sensação de que falhara na minha missão, sem saber que a reunião fôra um sucesso. O programa foi implementado e salvou mais vidas do que o esperado, perto de mil vidas entre 1995 e 1998.
Pensei em dar ou jogar fora todas as minhas cuecas “normais”, que estavam sem uso há mais de dois anos. Entre elas, uma cueca “revolucionária”, presente – essa é dificil de acreditar – dos meus pais, que são ultra-conservadores, com Fidel, Che, Giap, Mao e outros escritos na frente e atrás. Amor de pai e mãe não conhece limites... Acabei colocando-as num saco plástico muito grande, verde, usado para colocar folhas e gravetos. Aceitava que a incontinência seria permanente. Pudera: depois de três anos... Houve um terceiro episódio, humilhante, num vôo de Miami a San Diego. Não me antecipei, como deveria, ao acúmulo de pessoas na fila do banheiro depois das refeições. Eu já usava algo que era meio termo entre fralda e cuéca. Simplesmente, não deu. Duas outras pessoas perceberam o ocorrido: minha companheira e uma desconhecida. Aguentei, triste e molhado, até a chegada quando, para minha surpresa, a desconhecida se postou na minha frente, esperou que eu chegasse perto e, sem troca de palavras, ajudou a me escoltar até o banheiro mais próximo, já no aeroporto, devidamente sanduichado entre ela e minha companheira. Nunca trocamos uma palavra. Vestí um ridículo calção de banho, mas que era melhor do que calça mijada.
Eram três anos de incontinência. Depois de muito chôro e desespêro, busquei e encontrei um trabalho de Stephen Jay Gould, The median isn’t the message. Gould foi diagnosticado com mesoepithelioma, um câncer brutal que costuma atacar os que trabalham com asbestos. A mediana de sobrevivência era de oito meses: metade dos pacientes morria antes de oito meses do diagnóstico e a outra metade depois. Em que metade estaria Gould? Ele também sabia que a metade de maior sobrevivência era mais “esticada” do que a primeira. Devido à decisão de vencer a doença, ao alto nível educacional, ao acesso a informação atualizada, à disposição a entrar em programas experimentais, e ao seu espírito guerreiro, Gould poderia estar no extremo de maior sobrevivência. Estava. Isso foi em 1982. Gould morreu em Março de 2002, vinte anos depois, sobrevivendo à mediana do mesoepithelioma por um fator de 30! Durante este tempo, escreveu vários livros, ensinou muitos alunos e inspirou muita gente. Eu tive a oportunidade de vê-lo e ouví-lo ao vivo duas vezes e muitas de suas idéias se multiplicaram na minha cabeça. Morreu de outro câncer.
Essa e outras fontes de inspiração me levaram a investir para valer no controle da incontinência. Meu médico não acreditava que ainda fosse possível, mas reiterou recomendação anterior: faça exercícios! Aperte os glúteos cinquenta vezes por dia. Comecei com 100 e em duas semanas estava em 500. Fiz um conjunto de exercícios que as mulheres fazem, os Exercícios de Kegel. Aprendí a espirrar controlando, a me agachar controlando, a levantar peso controlando, a... isso também controlando. Aprendí que aquela área tinha vários músculos e que o grande desafio era mexer cada um deles, sem mover os outros. Troquei as cuecas/fraldas por cuécas reforçadas. Um dia, me dei conta de que havia meses desde que eu molhara uma cueca. Hesitei, mas fui buscar no sótão o saco plástico com as minhas cuécas, agora históricas. Ví e acariciei cada uma delas, apesar do môfo, vesti uma e chorei copiosamente – três anos e meio depois da cirurgia. Nunca mais usei uma cuéca reforçada. Só não pude usar a cuéca revolucionária porque eu tinha músculo demais para cuéca de menos.
Há, neste momento, milhões de brasileiros sofrendo por incontinência e por várias formas de câncer. Muitos sofrem à tôa. Na tradição autoritária brasileira, o médico pensa e decide por eles. É hora de sair dessa tradição e transformar os pacientes em instrumentos ativos da sua própria cura ou, onde isso não fôr possível, de sua ampla sobrevivência com qualidade de vida. As medianas não são um atributo da doença, mas de uma interação entre as características da doença e as dos pacientes. Mudando a atitude e o comportamento dos pacientes, a mediana muda. O paciente pode alterar a sua probabilidade de quase qualquer coisa. Alguns vivem menos porque desistem de viver e ficam à espera da morte, se entregam às médias e medianas, esquecem que podem influenciar a sua própria sobrevivência e qualidade de sua vida. Outros vivem mais e melhor porque redescobrem a fé e a alegria de viver. A todos vocês, com p´roblemas semelhantes, faço um convite: vamos voltar a usar as nossas cuécas!
Gláucio Ary Dillon Soares
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