Calorias: perda de peso numa dieta 'low-carb' de 4600 kcal
Saúde

Calorias: perda de peso numa dieta 'low-carb' de 4600 kcal





No post anterior, comecei a falar sobre o auto-experimento que realizei para testar o efeito de duas dietas hipercalóricas distintas sobre o ganho de peso durante um período de 21 dias: a primeira, com redução de carboidratos (low-carb/high fat); e a segunda, com restrição de gorduras (low-fat/high-carb).


Período 1: Dieta rica em gordura e reduzida em carboidratos (low-carb/high-fat)

Primeiramente, é importante ressaltar que passei por um período de adaptação antes do início dos primeiros 21 dias do experimento. Durante esse tempo, segui uma dieta com aproximadamente 80-100 g de carboidratos por dia para que meu estoque de glicogênio fosse pelo menos parcialmente reduzido. Isso porque o glicogênio é armazenado no músculo ligado a moléculas de água. Quando reduzimos a quantidade de carboidratos na dieta, nosso corpo necessita mobilizar glicogênio de nossos músculos para realizar algumas das atividades do dia a dia. Assim como a quantidade de glicogênio é naturalmente reduzida por uma dieta com restrição de carboidratos, a quantidade de água  por estar ligada ao glicogênio  também é diminuída. E esse fato pode refletir em perda de peso por redução na quantidade de líquidos do corpo. Portanto, o objetivo dessa adaptação foi garantir que a redução no conteúdo de glicogênio e água nos músculos influenciasse minimamente o meu peso.

A seguir seguem meus dados iniciais e o detalhamento da dieta hipercalórica restrita em carboidratos e rica em gordura (low-carb/high-fat) que consumi durante os primeiros 21 dias do experimento.

- Idade: 23 anos
- Altura: 1,78 m
- Peso: 71,0 kg
- Circunferência da cintura: 74 cm
- Circunferência abdominal: 76 cm
- Atividade física: musculação 3x/semana
- Gasto energético: 2600 kcal

Café da manhã
- Ovos (270 g) + Bacon (80 g) + Manteiga (40 g)

Almoço
- Carne bovina (100 g) + Manteiga (20 g)
- Agrião (80 g) + Tomate (150 g)
- Creme de leite (300 g) + Gema (15 g) + Mel (8 g) + Coco ralado (17 g)

Jantar
- Carne bovina (100 g) + Manteiga (20 g)
- Queijo mussarela (50 g)
- Macadâmia (40 g)

Ceia
- Creme de leite (600 g) + Gema (30 g) + Mel (16 g) + Coco ralado (33 g)

TOTAL: 4610 kcal
- Carboidratos: 63,8 g (6% das calorias)
- Proteínas: 163,0 g (14% das calorias)
- Gorduras: 411,4 g (80% das calorias)


Relatos sobre a adaptação à dieta

Manter essa dieta não foi fácil, mesmo que por apenas 21 dias. Grama por grama, alimentos ricos em gorduras normalmente possuem mais calorias do que alimentos ricos em carboidratos ou proteínas, uma vez que cada grama de gordura fornece 9 kcal e cada grama de carboidrato ou proteína fornece 4 kcal. Devido a essas características, os alimentos ricos em gordura normalmente são considerados com elevada densidade energética, ou seja, possuem muitas calorias numa determinada porção. Porém, mesmo seguindo uma dieta com alimentos ricos em gordura, com elevada densidade energética, a quantidade de comida para se atingir um valor de 4600 calorias por dia ainda é muito grande.

Além disso, a gordura possui uma capacidade muito alta de proporcionar saciedade ao estimular a liberação de um hormônio chamado colecistoquinina. Esse hormônio possui, entre outras, a função de reduzir a velocidade de esvaziamento do estômago e também de sinalizar para o cérebro que estamos satisfeitos [1,2,3], auxiliando na manutenção da saciedade após as refeições.

Por esses motivos, eu passava boa parte dos meus dias me sentindo mais do que saciado, às vezes até nauseado, pela grande quantidade de comida e gordura que eu estava consumindo. Eu não senti sensação de fome em nenhum momento de qualquer um dos dias desse primeiro período do experimento. Adicionalmente, no início de cada uma das refeições eu normalmente ainda estava me sentindo saciado, o que dificultava ainda mais a ingestão de cada refeição. Nesse caso, acredito que a sensação extrema de saciedade foi resultado da combinação da grande quantidade de alimentos e, principalmente, da capacidade das gorduras de proporcionarem saciedade.

É muito provável que minha termogênese (dissipação ou “perda” de energia na forma de calor) tenha aumentado, porque apresentei uma maior sensação de calor praticamente em todos os dias dessa primeira parte do experimento. Algumas evidências sugerem que o aumento no consumo de calorias por si só é capaz de aumentar a termogênese [4]. Além disso, é possível que a redução no consumo de carboidratos e o aumento na ingestão de gorduras podem contribuir, de forma relativamente independente do consumo de calorias, para uma maior termogênese [5]. E esse aumento na termogênese significa que parte da energia (calorias) está sendo “perdida” na forma de calor pelo nosso organismo  o que pode ajudar a explicar, pelo menos em parte, os resultados que serão apresentados a seguir.


Resultados

O que aconteceu com meu peso, circunferência da cintura e circunferência abdominal durante cada uma das semanas:

Figura 1. Peso, circunferência da cintura e circunferência abdominal no início e durante os 21 dias da primeira fase do experimento.
[Clique na imagem para visualizá-la em tamanho real]


Em imagens:

Figura 2. Evolução em imagens da composição corporal durante os 21 dias da primeira fase do experimento.
[Clique na imagem para visualizá-la em tamanho real]


Como pode ser percebido, inclusive pelas imagens, eu perdi peso e tive redução nas circunferências da cintura e abdominal. Por quê? Sinceramente, essa não é uma pergunta de fácil resposta.

O resultado de perda de peso foi realmente inesperado. O que eu imaginei que iria acontecer seria pelo menos um modesto ganho de peso, ainda que inferior ao previsto (4,7 a 5,5 kg) pelo cálculo das calorias. Isso porque, apesar de não acreditar que as calorias funcionem de forma tão simples como as pessoas e os profissionais de nutrição costumam propagar, elas ainda são calorias. Ou seja, ainda significam energia para o corpo. Por isso, considerando a elevada quantidade de calorias consumidas, algum ganho de peso era esperado.

Por outro lado, um inglês ainda mais maluco fez um experimento muito parecido com este e obteve resultados semelhantes. Consumindo diariamente mais de 5000 calorias por dia, também durante 21 dias, ele ganhou apenas 1,3 kg, diferentemente dos 7,3 kg que a contagem de calorias previu; entretanto, ele apresentou redução na circunferência na cintura após esse período, o que sugere que o ganho de peso dele talvez não tenha sido de gordura, mas sim de massa muscular.

É bem possível que tanto ele como eu tenhamos perdido gordura corporal nesses experimentos, já que as nossas circunferências da cintura  um importante marcador da perda de gordura  foram reduzidas com nossas dietas. Além disso, apesar da resolução das imagens não ser das melhores, é possível ver que estou ligeiramente mais magro na última semana.

Os possíveis ou prováveis motivos pelos quais eu não ganhei peso com essa dieta pobre em carboidratos, mas rica em gorduras, são:

1) Consumir gorduras não é o que faz você engordar.

2) A redução na quantidade de carboidratos na dieta força nosso corpo a produzir glicose a partir de glicerol, lactato ou, principalmente, aminoácidos, num processo denominado gliconeogênese. Essa via bioquímica de produção de glicose é importante para fornecer substrato energético para os tecidos e células que são pelo menos parcialmente dependentes da glicose como fonte de energia, tais como as células vermelhas e o cérebro. Ao mesmo tempo, a gliconeogênese é um processo que consome energia, fazendo com que nosso gasto energético naturalmente aumente com a restrição de carboidratos na dieta.

3) A restrição de carboidratos aumenta nosso gasto energético pela produção de corpos cetônicos. A menor oferta de glicose na circulação faz com que nosso corpo utilize preferencialmente as gorduras como fonte de energia. Parte da gordura, ao ser degradada, é convertida em corpos cetônicos  importante substrato energético na ausência de glicose, inclusive para o cérebro.

4) A menor quantidade de carboidratos na dieta significa também menor concentração de insulina no nosso corpo. A insulina é o principal hormônio anabólico que temos, tanto para a síntese de músculo como para síntese de gordura. Ela, ao mesmo tempo em que promove a produção de gordura, inibe sua utilização como fonte de energia. Por isso, existe uma linha de pensamento que acredita que a redução nos níveis de insulina pela restrição de carboidratos da alimentação seria fundamental para a promoção da perda de peso e gordura corporal. E não é apenas uma simples suposição, tendo em vista que alguns estudos experimentais dão suporte a essa ideia [6]. O que ajudaria também a explicar a vantagem que a restrição de carboidratos parece demonstrar em relação à restrição de gordura para a perda de peso.

5) O meu corpo provavelmente tentou se adaptar à nova situação metabólica em que se encontrou. Será que a minha necessidade energética, em condições normais, é superior a 4600 kcal para que a perda de peso fosse explicada mesmo numa dieta hipercalórica? Com certeza não. Mas, de alguma forma, meu corpo se adaptou a essa dieta de modo a gastar, “desperdiçar” ou “perder” mais energia do que o normal. É possível que parte das proteínas, gorduras e carboidratos ingeridos tenham sido deixados de ser absorvidos. É provável que tenha ocorrido um maior gasto energético em funções basais (respiração, batimentos cardíacos etc.) e, talvez, até um aumento involuntário das minhas atividades do dia a dia  o que faria com que eu gastasse mais energia espontaneamente. É possível, ainda, que tenham acontecido alterações na síntese e atividade de outros hormônios e vias bioquímicas que, de alguma forma, facilitaram a perda de peso. O fato é que, durante esse período, as 4600 kcal que eu ingeri acabaram não sendo superiores às minhas necessidades energéticas, e por isso houve perda de peso.

Importante: jamais faça alterações radicais assim na sua alimentação sem o acompanhamento de um profissional de saúde verdadeiramente qualificado!


Próximos capítulos...

No próximo post veremos o que aconteceu comigo ao consumir uma dieta de 4600 calorias à base de carboidratos.


Parte 1 - Calorias: introdução e conceitos
Parte 2 - Calorias: são todas iguais?
Parte 3 - Calorias: redução de carboidratos ou gordura para perda de peso?
Parte 4 - Calorias: um auto-experimento de carboidratos versus gorduras
Parte 5 - Calorias: perda de peso com uma dieta de 4600 kcal rica em gordura e reduzida em carboidratos
Parte 6 – Calorias: ganho de peso com uma dieta de 4600 kcal rica em carboidratos e reduzida em gordura
Parte 7 - Calorias: reflexões importantes





Referências

1. Moran TH, Kinzig KP. Gastrointestinal satiety signals II. Cholecystokinin. Am J Physiol Gastrointest Liver Physiol. 2004;286(2):G183-8.

2. Stanley S, et al. Hormonal regulation of food intake. Physiol Rev. 2005;85(4):1131-58.

3. Coll AP, et al. The hormonal control of food intake. Cell. 2007;129(2):251-62.

4. Joosen AM, Westerterp KR. Energy expenditure during overfeeding. Nutr Metab (Lond). 2006;3:25.

5. Manninen AH. Is a calorie really a calorie? Metabolic advantage of low-carbohydrate diets. J Int Soc Sports Nutr. 2004;1(2):21-6.

6. Volek JS, Sharman MJ, Love DM, et al. Body composition and hormonal responses to a carbohydrate-restricted diet. Metabolism. 2002;51(7):864-70.




loading...

- Calorias: Reflexões Importantes
Nessa série de posts sobre calorias vimos que nosso corpo, assim como o ganho ou a perda de peso, pode não responder de forma igual às calorias consumidas a partir de diferentes nutrientes. Como exemplo, discutimos que dietas com redução de carboidratos...

- Calorias: Um Auto-experimento De Carboidratos Versus Gorduras
O conceito de vantagem metabólica oferece suporte à hipótese de que dietas com redução na quantidade de carboidratos (dietas low-carb) são mais vantajosas que dietas com redução de gordura (dietas low-fat) para a perda de peso. Seria...

- Calorias: Redução De Carboidratos Ou Gordura Para Perda De Peso?
Há muito tempo tem se acreditado que a redução de gordura na dieta é uma das estratégias mais efetivas para a perda de peso e de gordura corporal. Isso teoricamente se deve a dois fatores principais: 1) se você ingere menos gordura o corpo tende...

- Calorias: São Todas Iguais?
É amplamente divulgado e aceito que o ganho de peso, e consequentemente o sobrepeso e a obesidade, é resultante de um balanço energético positivo. Ou seja, ocorre quando o consumo é superior ao gasto de calorias. Assim, dizem que se alguém deseja...

- Calorias: Introdução E Conceitos
Talvez não exista um assunto mais comentado dentro do universo da nutrição do que as calorias, principalmente por aqueles que se preocupam com saúde e alimentação. Por esse motivo, essa primeira série de posts será dedicada a elas, onde irei...



Saúde








.