Dietas hiperproteicas e a função renal
Saúde

Dietas hiperproteicas e a função renal



Uma das maiores preocupações de quem segue uma dieta hiperproteicas, tanto para perda de peso como para aumento de massa muscular, é o possível efeito deletério na função renal. Para quem saiu da universidade de medicina, é fácil e lógico associar um elevado consumo de proteína alimentar com um maior risco de desenvolver doença renal crónica. No entanto, os poucos estudos de intervenção em pessoas saudáveis não suportam esta perspectiva. Mas embora não existam evidências de que a proteína é um factor causal de patologia renal, a possibilidade teórica de um efeito agravante não deve ser menosprezada. Para além do mais, nem todas as dietas hiperproteicas são iguais.


O primeiro autor a apresentar uma argumentação séria e robusta a favor do efeito adverso da proteína na função renal for Brenner, em 1982, que postulou que o consumo elevado de proteína poderia levar à danificação dos glomérulos através de um aumento da pressão intra-glomerular e hiperfiltração. Este stress hemodinâmico provocaria alterações patofisiológicas nos rins que, com o tempo, levariam a uma esclerose progressiva e declínio da função renal. De facto, o consumo de proteína através de alimentos ou infusão intravenosa aumenta consideravelmente a taxa de filtração glomerular e uma dieta rica em proteínas parece agravar a insuficiência renal em indivíduos com doença pré-existente. Existem também alguns indícios, embora muito ténues, de que a redução da quantidade total de proteínas da dieta seja uma estratégia a considerar no controlo da disfunção renal.

O efeito a longo prazo das dietas hiperproteicas foi estudado pela primeira vez em 1999 pela equipa de Arnie Astrup, um trabalho que resultou num artigo muito citado por quem advoga este tipo de regimes (como eu). Até então, os esforços centraram-se em estudar o efeito da proteína alimentar na doença renal estabelecida e não na sua relação causa-efeito. Infelizmente, mesmo depois do trabalho de Astrup, não foram realizados muito mais estudos sobre a questão, e menos ainda a longo-termo, complicando uma meta-análise rigorosa e conclusiva. Astrup recrutou 65 indivíduos com um BMI entre os 25 e os 35 e idades entre os 18 e 56 anos, saudáveis e com uma taxa de filtração glomérular (GFR) normal. Os voluntários foram divididos aleatoriamente em 3 grupos: um grupo com 25% da energia derivada da proteína (HP), outro com 12% (LP) e um grupo controlo. A intervenção durou 6 meses e a aderência à dieta foi testada laboratorialmente. De acordo com a hipótese de Brenner, foi verificada uma maior GFR na dieta HP, acompanhada por um aumento no volume dos rins. Embora à primeira vista isto possa parecer um efeito adverso, o aumento de volume renal parece ser uma adaptação normal à carga proteica de forma a manter uma GFR específica constante (GFR por unidade de volume renal). O autor concluiu que os rins se adaptam ao consumo elevado de proteína sem indicações de um efeito adverso na sua funcionalidade.

Para além do estudo de Astrup, foi também demonstrado que uma dieta hiperproteica não provoca efeitos deletérios na função renal e hepática de roedores e que consumos de proteína até 2.8 g/kg de peso não afectam a capacidade de filtração dos rins em atletas. Embora seja tentador afirmar que o risco de doença renal crónica não é influenciado pelo consumo proteico, é uma assumpção que não podemos fazer de ânimo leve. Reparem que no estudo de Astrup em indivíduos com excesso de peso a quantidade de proteína é dada em % de energia e não em quantidade total. Como os grupos foram submetidos a dietas hipocalóricas para perda de peso, é possível que 25% da energia não represente um consumo muito elevado de proteína. Na verdade, o peso corporal excessivo relaciona-se directamente com a deterioração da função renal e os resultados da dieta poderão confundir os efeitos isolados da proteína alimentar. Também não é expectável que a capacidade de filtração seja directamente proporcional ao peso corporal, embora exista uma relação com a massa magra do indivíduo. A necessidade de eliminar os catabolitos azotados é um trabalho acrescido em dietas hiperproteicas, mas não existem provas de que esteja além da capacidade dos rins.

A proteinúria e albuminúria são marcadores da progressão de doença renal crónica, mas a sua relação com a quantidade de proteína ingerida tem-se demonstrado muito inconsistente. Embora alguns estudos sugiram que o risco de microalbuminúria aumente progressivamente com a quantidade de proteína, outros indicam que esta relação só existe em pacientes com diabetes e hipertensão. Uma dieta low-carb e rica em proteínas durante 6 meses não alterou a proteinúria em indivíduos com excesso de peso. Por outro lado, alguns estudos suportam a ideia de que a proteína dietética aumenta a excreção proteica renal, mas não existem indícios de alterações estruturais ou funcionais nos glomérulos renais. Mais uma vez, a incoerência dos resultados não permite retirar conclusões peremptórias, mas não existem provas factuais de que um consumo proteico acima das recomendações oficiais (0.8 g/kg) afecte a função renal.

Mas nem todas as dietas são iguais e a carga ácida é um reconhecido factor de risco para doença renal crónica. A metabolização de proteínas, legumes e cereais aumenta os níveis de aniões e ácidos orgânicos no plasma, o que se traduz numa redução do pH. Pelo contrário, os vegetais e as frutas são os únicos alimentos com natureza alcalina. A disrupção do equilíbrio ácido-base é um fenómeno potencialmente fatal e o organismo possui mecanismos fisiológicos que asseguram a manutenção de um pH constante. Em resposta a um aumento da acidez, são libertados catiões, especialmente o cálcio dos ossos, de forma a tamponizar o pH do sangue. Esta é a chamada hipótese “acid-ash” que explica a relação entre dietas ricas em proteínas e cereais, as mais comuns actualmente, com a osteoporose e desequilíbrios electrolíticos. A hipercalcinúria é também um factor de risco para a formação de calcificações nos rins, a chamada pedra. Mas para além do cálcio, o metabolismo do sódio também é afectado, observando-se uma elevada perda do ião na urina. A sua excreção excessiva é resultado da necessidade de tamponizar as grandes concentrações de ácidos orgânicos e aniões na urina, o que implica um trabalho acrescido por parte dos rins que pode, em teoria, deteriorar a sua função a longo prazo, isto para além de representar um risco de desequilíbrios electrolíticos. Alguns estudos de efeito agudo demonstram um efeito negativo no balanço de cálcio com consumos de proteína na ordem das 2.0 g/kg comparativamente às recomendações vigentes. No entanto, outros trabalhos revelam que o aumento da excreção é acompanhado por um aumento da absorção intestinal, sem contributo da massa óssea, e foi também sugerido que um consumo relativamente elevado de proteína está associado a um aumento da densidade mineral dos ossos.

Um outro risco teórico das dietas hiperproteicas seria a hiperuricémia (ácido úrico), também associada à falência renal. No entanto, um estudo recente não encontrou qualquer aumento nos níveis de ácido úrico em indivíduos submetidos uma dieta hiperproteica. Embora não exista qualquer evidência de uma relação causa-efeito, é recomendável que o consumo de alimentos ricos em purinas seja controlado.

Destes dados podemos concluir que não existem provas de um efeito deletério das dietas hiperproteicas na função renal, embora seja reconhecido que alteram alguns parâmetros fisiológicos, que são acompanhados por uma adaptação estrutural do rim. Mas em indivíduos de risco ou com doença prévia, é claro o benefício de manter um consumo moderado de proteína de forma a abrandar o desenvolvimento da disfunção. Uma vez que a deterioração da função renal é “silenciosa”, é aconselhável que qualquer pessoa faça a despistagem antes de ingressar num regime hiperproteico. Além disso, convém reforçar a ideia de que a dieta no seu todo é provavelmente mais importante do que a quantidade de proteína em si. Um consumo elevado deve ser compensado com vegetais e frutas de forma a anular o cariz ácido das dietas hiperproteicas. Além do mais, o equilíbrio ácido-base pode ser a causa primária da associação entre a proteína e doença renal já que o consumo de cereais domina as dietas comuns e recomendadas na actualidade. Estes regimes alimentares acarretam uma elevada carga ácida que, em conjugação com o consumo diminuto de produtos de potencial alcalino (apenas os vegetais e fruta) providencia o ambiente propício ao desenvolvimento de doença renal crónica.

Portanto, o meu conselho mais reservado seria que de facto as dietas hiperproteicas são seguras dentro dos limites razoáveis (2-2.5 g/kg) desde que sejam acompanhadas por um consumo significativo de vegetais e frutas, e de uma redução da importância relativa dos cereais. A conjugação de proteínas, cereais e legumes, precisamente os grupos dominantes nas dietas tradicionais, pode aumentar a acidez a níveis de risco e provocar uma sobrecarga renal. Como sempre defendi abordagens hiperproteicas mas tendencialmente alcalinas, estou à vontade para afirmar com elevada confiança que é uma abordagem segura e saudável para quem pretende optimizar a composição corporal. De qualquer forma, a monitorização da função renal é um teste simples que pode ser feito indirectamente através de parâmetros sanguíneos e que é aconselhável para desfazer qualquer dúvida. Não se esqueça que a insuficiência renal é assintomática nas fases iniciais, a altura ideal para um prognóstico favorável da doença.


Sérgio Veloso (Jekyll) 



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