Mais sobre os hidratos de carbono ao pequeno-almoço: o efeito do cortisol
Saúde

Mais sobre os hidratos de carbono ao pequeno-almoço: o efeito do cortisol



Disse-vos já que, numa perspectiva de optimização da composição corporal, pessoas menos tolerantes deveriam evitar os hidratos de carbono ao pequeno-almoço quando não treinam de manhã [link]. É uma posição que reafirmo convictamente, e consciente da polémica que gerou e possa gerar. Sempre nos disseram para comer hidratos ao pequeno-almoço! Ao pequeno-almoço e em todas as refeições, não se sabe bem porquê... Mas a verdade é que o que sempre nos disseram não tem funcionado bem para muita gente. Basta olhar à sua volta. Treinadores reconhecidos como Charles Poliquin e John Meadows têm uma opinião semelhante. Se a sua sessão de treino é à tarde ou à noite, a manhã é a melhor altura para cortar nos hidratos de carbono, mais adequados para o período peri-treino ("à volta do treino"). Mas a manhã é quando nós temos os níveis de cortisol no pico! Não deveríamos ingerir hidratos de carbono para atenuar o efeito catabólico? Talvez não...

Existem várias razões para uma restrição de hidratos de carbono na primeira refeição do dia, a não ser que seja próxima do treino. Os músculos poderão estar mais resistentes à insulina porque utilizaram ácidos gordos como fonte energética preferencial durante a noite, especialmente quando não são ingeridos hidratos de carbono nas horas antes de deitar, ou quando existe uma predisposição individual para um metabolismo ineficiente dos glícidos e má flexibilidade metabólica (alternância pouco ágil dos substratos energéticos) [link]. Por seu lado, os adipócitos poderão estar mais sensíveis à insulina, com um maior efeito supressivo da lipólise e propensão para reservar energia (gordura) para o resto do dia. No entanto, não é provável que os hidratos de carbono ingeridos ao pequeno-almoço sejam canalizados para gordura em grande extensão, a não ser num quadro de resistência hepática a insulina, não tão raro quanto isso. Mas para além disso, os hidratos de carbono aumentam a serotonina, um neurotransmissor que promove um cansaço e relaxamento, algo que não queremos de todo pela manhã mas que poderá ser bastante interessante à noite [link].

Mas e em relação ao cortisol? O nosso ritmo circadiano normal, e ideal diga-se, apresenta um pico matinal que ocorre aproximadamente 1h depois de acordar. Repito: normal. É assim que as coisas devem funcionar. A partir desse pico, a acrofase, os níveis decrescem até ao final do dia, com elevações mais ligeiras depois das refeições. O quê? Depois das refeições o cortisol aumenta? Exactamente... Mas com que tipo de refeições?

A literatura é escassa e pouco consistente a este nível. Um estudo em mulheres com obesidade visceral mostrou que uma refeição rica em hidratos de carbono, e em contraste com uma refeição rica em proteína e gordura, aumentou os níveis de cortisol [link]. Em animais, uma dieta hiperproteica parece reduzir os níveis de cortisol [link]. No entanto, são poucos os trabalhos em humanos que se dedicam à questão do efeito individual dos macronutrientes na secreção e perfil do cortisol, com resultados dispares e até contraditórios. Mas existe pelo menos um que vale a pena mencionar...

Martens e colaboradores estudaram o efeito de uma refeição exclusivamente com hidratos de carbono, lípidos ou proteína nos níveis de cortisol até ao período pós-prandial (120 min) em homens saudáveis e com peso normal [link]. As refeições consistiam em suplementos alimentares (Fantomalt ou Protifar), óleo de girassol, ou placebo (água), padronizados para sabor (com aromatizante) e energia. À excepção do placebo, todas as refeições forneciam 18% das necessidades diárias estimadas, e foram ingeridas 3,5h após um pequeno-almoço padronizado para 20% do requerimento calórico, e com o mesmo alimento para todos os indivíduos - um suplemento alimentar substituto de refeição. Os resultados estão ilustrados no gráfico seguinte:


O tempo 0 marca o final da refeição teste com o macronutriente (proteína, hidratos de carbono ou lipidos) ou placebo. O cortisol sérico foi avaliado antes do início da refeição (-20 min), e 30, 60, 90, e 120 min após. A refeição com hidratos de carbono (losango) elevou o cortisol aos 30 min, com um decréscimo lento subsequente. Por seu lado, a refeição com proteína (triângulo) permitiu uma redução acentuada e constante do cortisol até aos 120 min. Uma diminuição normal do pico que se observa naturalmente pela manhã.

Todos os fenómenos biológicos têm um mecanismo, e este não é excepção. Os hidratos de carbono (glicose) activam o sistema nervoso simpático e o eixo HPA (hipotálamo-pituitária-adrenais), elevando os níveis de cortisol. Mas mais relevante do que isso, eles previnem a redução da actividade do eixo HPA que ocorre naturalmente após a acrofase matinal, o que não acontece com os outros macronutrientes. Além disso, o aumento da serotonina poderá também levar a uma elevação do cortisol, através da activação de receptores serotonérgicos no hipocampo [link]. Fica no entanto por verificar se outras fontes de hidratos de carbono, com menor IG (índice glicémico) do que as dextrinas no Fantomalt, teriam um efeito semelhante. Como vimos, alguns indivíduos tem picos de glicémia tendencialmente superiores pela manhã, indicativos de uma maior resistência à insulina [link]. Será a hiperglicémia o fenómeno responsável pela acção a nível da HPA, favorecendo níveis de cortisol mais elevados. No entanto, a elevação nos níveis de açúcar depende muito mais da carga glicémica do que propriamente do IG. Por outras palavras, da quantidade de hidratos de carbono e não tanto da velocidade a que são absorvidos, particularmente em indivíduos com pouca tolerância.

A actividade da HPA, amplificada pelos hidratos de carbono como vimos, pode explicar em parte o ciclo vicioso da obesidade. Pela manhã, os níveis de cortisol estão altos e isso gera fome (o cortisol tem uma acção orexigénica no hipotálamo), em particular por alimentos apelativos (aka açúcar) e ricos em hidratos de carbono. Quando eles são ingeridos pela manhã, em particular num quadro de resistência à insulina que eleva a glicémia, geram ainda mais stress, impedindo a redução da actividade do eixo HPA e inibição da secreção de cortisol após o pico matinal. Os níveis de cortisol permanecem elevados mais tempo, gerando mais fome e agravando a resistência à insulina.

O cortisol está implicado na patofisiologia da obesidade abdominal e resistência à insulina. Um pico matinal exagerado, um perfil diário flat, ou uma inversão do ritmo (pico nocturno) têm sido associados a disfunções metabólicas que culminam na acumulação de gordura na região visceral, mais sensível ao cortisol. Mas a verdade é que essa associação se torna especialmente evidente quando a ingestão de açúcares é também elevada. Um estudo muito recente verificou isso mesmo em crianças [link]. Existe uma interação cortisol x dieta que não se verifica para outros tipos de nutrientes.

O efeito catabólico do cortisol não é exercido apenas sobre o músculo, mas também sobre os adipócitos. Por outras palavras, o cortisol promove lipólise, liberando ácidos gordos que são utilizados pelo músculo como fonte de energia. No entanto, embora promova a disponibilidade rápida de energia, o cortisol pode também facilitar a acumulação de gordura nos adipócitos viscerais. No fundo assume para si grande parte das funções da insulina nos adipócitos viscerais, excepto a inibição da lipólise: estimula o GLUT-4 e a LPL, aumenta a expressão de enzimas lipogénicas e promove a hipertrofia do adipócito.

Se os níveis de cortisol estão altos, ingerir hidratos de carbono, especialmente os refinados e refeições de alta carga glicémica, só vai agravar o problema e promover a acumulação de gordura. Já vimos que a proteína não parece afectar o funcionamento normal da HPA, e que pode até favorecer uma redução nos níveis de cortisol. Além disso, ela também eleva a insulina e disponibilidade aminoácidos para o músculo, exercendo desta forma um efeito anti-catabólico não dependente da glicose. A gordura também parece ser bastante neutra a este nível. Como tal, um pequeno-almoço rico em proteína e gordura parece-lhe assim tão descabido? A mim não, nem ao Charles Poliquin [link], nem ao John Meadows [link], entre muitos outros.

Uma questão que provavelmente surgiu aos mais atentos é a questão do pós-treino. Sabe-se que a ingestão de hidratos de carbono após ou durante o treino atenua a elevação do cortisol. Mas é importante entender que este aumento tem uma natureza diferente - stress físico e hipoglicémia. Quando os níveis de glicose baixam durante o exercício intenso, a resposta contra-regulatória entra em acção no sentido de elevar a glicémia, e da qual faz parte o cortisol. O cortisol tem uma acção neoglucogénica que favorece a manutenção da glicémia em níveis "normais" e estáveis pela conversão de aminoácidos, lactato e glicerol em glicose no fígado. Quando são ingeridos hidratos de carbono, a resposta contra-regulatória é cessada e o cortisol baixa. Se a ingestão for intra-treino, o aumento de cortisol é praticamente nulo. Além disso, o exercício aumenta substancialmente a sensibilidade à insulina no músculo e captação de glicose, utilizada para o esforço ou para repor as reservas de glicogénio gastas. É a altura em que o seu corpo está mais receptivo a uma carga de hidratos de carbono, e a sua ingestão dificilmente irá gerar picos de glicémia com elevada magnitude.

Mas de manhã nós não estamos hipoglicémicos. O cortisol e a resposta contra-regulatória são suficientes para manter as níveis de glicose mais ou menos estáveis durante a noite e de manhã. Na verdade, uma dieta low-carb tende até a elevar a glicémia matinal pela desensibilização hepática à insulina e maior efeito do cortisol. O treino e o acordar após um longo jejum são duas situações fisiológicas que não podem ser comparadas, tanto a nível de controlo da glicémia como de sensibilidade muscular à insulina. O peri-treino, desde que seja com intensidade digna desse nome, é o período por excelência para ingestão dos hidratos de carbono. Entre 50-70% do total diário deverá estar na refeição pré-treino, intra-treino (se houver), e pós-treino (uma ou duas). Os hidratos de carbono não são maus nem fazem engordar, antes pelo contrário. O que precisa é de entender o seu metabolismo e optimizar a ingestão de forma que funcionem a seu favor.

Concluindo, não é insanidade mental propor uma restrição de hidratos de carbono ao pequeno-almoço, excepto quando o treino é pela manhã. Aí entramos na questão do peri-treino que abordámos aqui. Insanidade é sim continuar a seguir protocolos sem resultados palpáveis na composição corporal, e cujo suporte científico é no mínimo frágil. O famoso "meat and nuts breakfast" popularizado por Charles Poliquin, embora outros treinadores já o recomendassem antes, enquadra-se neste conceito. Eu pessoalmente gosto de ovos com óleo de coco e amêndoas ou nozes, mas outras opções existem. Muitas pessoas, especialmente atletas, relatam esta alteração no seu padrão alimentar como uma das com maior impacto na composição corporal. Eu sou um experimentalista, sempre à procura de potenciar a minha performance e resultados. Isto funciona comigo, já vi funcionar em muitos outros, e é defendido por treinadores com provas dadas. Talvez não estejamos malucos... 

Leitura complementar:
Porque deve evitar os hidratos de carbono ao pequeno-almoço








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