Colesterol desconhecido?
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Colesterol desconhecido?


Uma notícia publicada hoje online no jornal Público tem sido muito partilhada por essas redes sociais fora: "Há um tipo de colesterol quase desconhecido e que é o pior de todos". No artigo referem-se a um estudo recente que associa um tipo "estranho" de colesterol com doenças cardiovasculares. Na verdade, este tipo estranho de colesterol, o colesterol ramanescente como lhe chamam, é tudo menos novo e está relacionado directamente com um outro que há muito falamos, o sdLDL (small dense LDL). Ora vejamos...

O colesterol remanescente é o que existe associado a um tipo de lipoproteínas chamadas RLP (remnant lipoproteins). Estas lipoproteínas derivam do metabolismo das VLDL (produzidas no fígado para transporte de triglicéridos e colesterol) e dos quilomicra (formadas no intestino para transportar os lípidos alimentares). Após acção da LPL nos tecidos (lipoproteína lipase), tanto as VLDL como os quilomicra perdem triglicéridos e, consequentemente, ganham densidade devido à maior proporção de proteína e colesterol. Isto é o que chamamos de RLPs, os tais vilões. De facto, já vários estudos as têm associado a efeitos deletérios na saúde cardiovascular, particularmente na função endotelial.



Em condições normais, estas RLP são rapidamente removidas de circulação pelo fígado, mas existem algumas variantes genéticas em que essa "limpeza" está comprometida. Foram estes indivíduos que os investigadores estudaram. Quando elas permanecem em circulação demasiado tempo é que os problemas começam. Existem indícios de que estas lipoproteínas podem interagir com os receptores LOX-1 no endotélio e, por esta via, iniciar uma cascata inflamatória desde a disfunção endotelial até à aterosclerose. 

Na verdade, o que difere as RLP das sdLDL é muito pouco e estas últimas derivam essencialmente das RLP. Para além de ambas activarem os LOX-1, particularmente após oxidação a que são altamente susceptíveis, podem também passar mais facilmente para o espaço subendotelial devido ao seu menor tamanho e maior densidade. Aí poderão ser facilmente oxidadas e capturadas pelos macrófagos que dão origem às foam cells características das placas de ateroma. Dá-se então não só uma progressão da lesão como também propagação da inflamação associada à aterosclerose.

A formação das RLP é um processo normal do metabolismo das lipoproteínas. Se forem removidas com eficácia, tudo em ordem. Mas para além da genética de risco, uma produção elevada de triglicéridos (TG) no fígado está implicada com a permanência destas RLP, e sdLDL, em circulação. A lipidação das VLDL (adição de triglicéridos à fracção proteica da partícula) depende de mecanismos enzimáticos, mas também da quantidade de TGs no fígado. Especialmente num ambiente de resistência hepática à insulina, a adição excessiva de TG às VLDL origina aquilo a que se chama VLDL tipo I, que não são mais que lipoproteínas muito grande e de densidade muito baixa. Estas VLDL tipo I são estruturalmente alteradas na componente proteica e a sua remoção é ineficiente. Assim, à medida que a LPL vai removendo os TG, as RLP que se formam permanecem em circulação por mais tempo para exercer o seu efeito aterogénico, directo ou via sdLDL.

Uma coisa interessante é que a quantidade de triglicéridos produzida está directamente associada ao teor de hidratos de carbono da dieta. Como os próprios autores são citados, "os altos níveis de colesterol feio [RLPs] resultam de altos níveis de gordura no sangue (triglicéridos)". Já vimos porquê. Então, e tal como me venho a bater há muito, o risco cardiovascular indicado pela fracção lipídica depende bastante da carga glicémica da dieta e da resistência hepática à insulina.

Os resultados desde estudo não me põem a saltar de alegria, Sinceramente não vejo ali uma descoberta revolucionária tendo em conta o que já se sabe acerca das sdLDL. Digamos que estas estão para as RLP como a HbA1c está para a glicose. A primeira surge como consequência da última. O metabolismo anormal das RLP dá origem as sdLDL. No entanto, a electroforese para análise às sdLDL não é prática comum. Existe um indicador do tipo de LDL, o índice aterogénico do plasma (AIP), que pode ser calculado a partir dos níveis de HDL-C e triglicéridos. Também o método de cálculo utilizado no estudo poderá vir a ser útil em clínica. Este "colesterol remanescente" é calculado como Colesterol Total - LDL-C - HDL-C, valores estes não obtidos em jejum. Se as VLDL são ricas em triglicéridos, a sua formação dá-se no período pós-prandial (após refeições) e, consequentemente, é por esta altura que as RLP deverão ser avaliadas. Na verdade, já vários autores tinham sugerido os triglicéridos pós-prandiais como marcador de risco cardiovascular.

Resumindo, estas RLP são mais do mesmo. Os riscos são os mesmos que temos vindo a falar. Os mecanismos são os mesmos. As causas são as mesmas. Infelizmente, é preciso evidência ao quadrado, e muita vontade, para que os resultados da investigação científica passem a ser prática clínica comum. Mas lá chegaremos... E felizmente já há quem lá tenha chegado.






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