Saúde
Diabetes tipo 2: medicina ultrapassada
As revistas científicas mais importantes de saúde e medicina do mundo publicam, de tempos em tempos, alguns estudos que chamamos de relatos de caso. Os relatos de caso são estudos que têm como objetivo principal descrever sinais, sintomas, diagnóstico, tratamento e acompanhamento de um único paciente, o qual normalmente apresenta uma condição clínica muita específica, peculiar ou não convencional. Assim, eles se tornam interessantes por normalmente apresentarem casos fora do padrão da prática clínica do dia a dia.
Tendo isso em mente, gostaria de expor e comentar aqui um relato de caso publicado no dia 5 de abril de 2014, na revista The Lancet — uma das mais antigas e importantes publicações científicas do mundo.
Sobre o relato de caso
O estudo em questão [1] relata o caso de uma menina de 5 anos que foi diagnosticada com diabetes tipo 2. E esse é o principal motivo da publicação desse relato de caso, já que o diabetes tipo 2 normalmente ainda não é tão comum em crianças, mas sim em adultos — embora seja cada vez maior, principalmente desde o início dos anos 2000, o número de crianças com sobrepeso, obesidade e complicações metabólicas associadas, como o diabetes tipo 2 [2,3,4].
A menina acompanhava a mãe numa consulta médica, em agosto de 2013, numa remota comunidade indígena na Austrália. Ao final da consulta, a mãe relatou que a filha apresentava feridas nas coxas que não curavam há 5 semanas e que a menina vinha urinando na cama, enquanto dormia, pelos últimos 12 meses.
Ao notarem o sobrepeso apresentado pela criança, os médicos realizaram dois exames de sangue na menina, os quais revelaram níveis alarmantes de glicose de 336 e 345 mg/dL (o valor de referência é de 70 a 99 mg/dL). Para verificar a possibilidade de diabetes tipo 1, que é o tipo mais comum em crianças, os médicos também mediram a concentração de corpos cetônicos (substância que tem sua produção aumentada em casos de diabetes tipo 1) na urina. O resultado foi negativo — o que já era de se esperar, já que crianças com diabetes tipo 1 normalmente apresentam perda de peso ao invés de ganho de peso.
[Curiosidade: a mensuração de corpos cetônicos na urina normalmente é feita pela avaliação dos níveis de acetoacetato, e não beta-hidroxibutirato (dois corpos cetônicos diferentes). Pacientes com diabetes tipo 1, apesar do estado "crítico" de produção de corpos cetônicos, podem ainda assim testar negativo para o exame de corpos cetônicos na urina, porque a produção de acetoacetato é relativamente pequena quando comparada à produção de beta-hidroxibutirato. Assim, especificamente para a paciente relatada no caso, o principal marcador para excluir a possibilidade de diabetes tipo 1 foi, na realidade, a insulina no sangue, uma vez que pacientes com essa doença apresentam redução muito significativa na secreção de insulina (a concentração de insulina estava elevada nessa criança)]
Junto à glicemia extremamente elevada, a menina apresentou alteração em alguns outros marcadores que também avaliam o controle da glicose no sangue:
- Hemoglobina glicada: 11,9% (Referência: 4,3 a 6,0%)
- Peptídeo C: 1,6 mmol/L (Referência: 0,3 a 1,4 mmol/L)
- Insulina: 201 pmol/L (Referência: 14 a 160 pmol/L)
Além disso, a menina nasceu macrossômica, ou seja, com um peso considerado excessivo (4,5 kg), enquanto a mãe apresentou diabetes gestacional não controlado durante a gravidez. De fato, o diabetes gestacional não controlado parece ser fator de risco para o nascimento de bebês gigantes [5,6]. Para agravar ainda mais a situação, crianças que nascem com peso elevado apresentam maior risco de complicações metabólicas, incluindo diabetes tipo 2, ainda na infância [7]. Sem contar que a família da menina já tinha histórico de diabetes tipo 2...
Foi constatado que a menina apresentava 36 kg, altura de 1,23 m e IMC de 24,5 kg/m2, confirmando o sobrepeso observado visualmente.
Figura 1. Paciente de 5 anos com diabetes tipo 2, que também apresentava acantose nigricans, um tipo de hiperpigmentação da pele comumente desenvolvida em pacientes com sobrepeso ou obesidade.
[Clique na imagem para visualizá-la em tamanho real]
Sobre o tratamento
Advinha o que os médicos passaram como tratamento para a menina? Uma combinação de metformina e insulina. Metformina é a droga mais utilizada para o tratamento do diabetes tipo 2, e normalmente possui ação considerada efetiva em auxiliar no tratamento da doença. A insulina foi prescrita para ajudar ainda mais a reduzir os níveis de glicose no sangue do paciente.
Não estou questionando o tratamento medicamentoso em si. Nesse caso extremo e complicado, de uma menina de apenas 5 anos, o uso de metformina e (talvez) de insulina realmente fosse necessário num primeiro momento. Mas um ponto é inquestionável: a alimentação sempre será o principal foco no tratamento do diabetes tipo 2.
Por isso, três grandes problemas surgem a partir do tratamento utilizado na condução do caso da menina de 5 anos:
1) Aparentemente nenhuma recomendação nutricional foi dada à mãe e à criança, já que os autores não fazem qualquer referência a respeito. Mesmo que a paciente e a mãe tenham sido orientadas em relação à alimentação, os médicos não consideram a alimentação um fator minimamente importante nesse caso, já que não mencionaram as possíveis recomendações que talvez tenham sido passadas para a paciente.
2) A prevalência do pensamento arcaico da medicina em só focar no tratamento dos sinais e sintomas, esquecendo-se da real causa da doença. A metformina até ajuda a tratar uma parte da causa, mas a insulina só trata sintomas. De qualquer forma, casos de complicações metabólicas (diabetes tipo 2, resistência à insulina, dislipidemias, síndrome metabólica etc.) em 99% das situações têm sua origem associada aos hábitos alimentares. Assim, a alimentação é importantíssima nesses casos, sempre.
3) Antes da publicação, todos os artigos científicos são avaliados por revisores especializados na área ao qual o estudo pertence. Ou pelo menos é isso que deveria ocorrer... Assim, subentende-se que o relato de caso aqui exposto passou pela revisão de algum pesquisador que tem conhecimento na área de diabetes tipo 2. Considerando que esse estudo relata o caso de uma criança de 5 anos com diabetes tipo 2 que nãoteve sua doença controlada apenas com o uso de medicamentos, pergunta-se: como é possível um revisor de uma das mais importantes revistas científicas de saúde do mundo aceitar a publicação de um relato de caso com essa temática que não refere o papel fundamental que a alimentação pode exercer no controle da doença em questão [8,9,10,11,12,13,14,15,16,17,18,19]?
Para “piorar” a situação da opção de tratamento utilizada pelos médicos, a administração de metformina + insulina para a criança não resultou na normalização da glicemia. A glicose no sangue da menina ainda ficou em concentrações variando de 180 a 234 mg/dL. O que ainda é assustadoramente elevado.
Após citarem algumas pesquisas que falam sobre o aumento da prevalência de sobrepeso e diabetes tipo 2 em crianças, e sobre os problemas e complicações associadas a essas condições patológicas, os autores afirmam ao final desse estudo de relato de caso:
“Further long-term outcome studies are needed to determine the most efficacious combinations of interventions for type 2 diabetes in children [...]”
Em tradução livre:
“Mais estudos de longo prazo são necessários para se determinar as combinações de tratamento mais eficazes para o diabetes tipo 2 em crianças [...]”
Considerações finais
Será que mais estudos são mesmo necessários?
A literatura científica já é bem clara sobre o tratamento de sobrepeso, diabetes tipo 2, resistência à insulina, síndrome metabólica etc. E esse tratamento deve ter como base a alimentação, que pode até mesmo praticamente reverter o diabetes tipo 2 [20,21]. Sem contar os inúmeros casos clínicos de pacientes que reverteram diabetes tipo 2 sem o uso de medicamente, apenas com a perda de peso e alimentação adequada. Veja as referências de 8 a 19, citadas acima, para conhecer um pouco sobre como a adoção de hábitos alimentares minimamente saudáveis podem melhorar a saúde desses pacientes.
Medicamentos podem ajudarem alguns casos, mas sempre associados a uma dieta saudável. Em muitos casos, os medicamentos nem são necessários. O mais importante de tudo é que a alimentação sempre será o diferencial para qualquer indivíduo com diabetes tipo 2, resistência à insulina, sobrepeso e obesidade.
A medicina é extremamente importante em vários aspectos, mas precisa seriamente rever seus conceitos em relação ao tratamento de algumas patologias, devendo reconhecer o papel fundamental que a alimentação e a nutrição têm.
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Atualização (21/04/2014): mais uma estudo que mostra o papel fundamental que a alimentação pode ter no controle e tratamento do diabetes tipo 2 [22].
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Referências
1. Kevat D, et al. A 5-year old girl with type 2 diabetes. Lancet. 2014;383(9924):1268.
2. Pinhas-Hamiel O, Zeitler P. The global spread of type 2 diabetes mellitus in children and adolescents. J Pediatr. 2005;146(5):693-700.
3. Reinehr T. Type 2 diabetes mellitus in children and adolescents. World J Diabetes. 2013;4(6):270-281.
4. Ogden C, et al. Prevalence of childhood and adult obesity in the United States, 2011-2012. JAMA. 2014;311(8):806-14.
5. Dabelea D. The predisposition to obesity and diabetes in offspring of diabetic mothers. Diabetes Care. 2007;30 Suppl 2:S169-74.
6. Leipold H, et al. Large-for-gestational-age newborns in women with insulin-treated gestational diabetes under strict metabolic control. Wien Klin Wochenschr. 2005;117(15-16):521-5.
7. Boney CM, et al. Metabolic syndrome in childhood: association with birth weight, maternal obesity, and gestational diabetes mellitus. Pediatrics. 2005;115(3):e290-6.
8. Hockaday TD, et al. Prospective comparison of modified fat-high-carbohydrate with standard low-carbohydrate dietary advice in the treatment of diabetes: one year follow-up study. Br J Nutr. 1978;39(2):357-62.
9. Sondike SB, et al. Effects of a low-carbohydrate diet on weight loss and cardiovascular risk factor in overweight adolescents. J Pediatr. 2003;142(3):253-8.
10. Samaha FF, et al. A low-carbohydrate as compared with a low-fat diet in severe obesity. N Engl J Med. 2003;348(21):2074-81.
11. Stern L, et al. The effects of low-carbohydrate versus conventional weight loss diets in severely obese adults: one-year follow-up of a randomized trial. Ann Intern Med. 2004;140(10):778-85.
12. McAuley KA, et al. Comparison of high-fat and high-protein diets with a high-carbohydrate diet in insulin-resistant obese women. Diabetologia. 2005;48(1):8-16.
13. Daly ME, et al. Short-term effects of severe dietary carbohydrate-restriction advice in Type 2 diabetes — a randomized controlled trial. Diabet Med. 2006;23(1):15-20.
14. Dyson PA, et al. A low-carbohydrate diet is more effective in reducing body weight than healthy eating in both diabetic and non-diabetic subjects. Diabet Med. 2007;24(12):1430-5.
15. Westman EC, et al. The effect of a low-carbohydrate, ketogenic diet versus a low-glycemic index diet on glycemic control in type 2 diabetes mellitus. Nutr Metab (Lond). 2008;5:36.
16. Volek JS, et al. Carbohydrate restriction has a more favorable impact on the metabolic syndrome than a low fat diet. Lipids. 2009;44(4):297-309.
17. Klemsdal TO, et al. Effects of a low glycemic load diet versus a low-fat diet in subjects with and without the metabolic syndrome. Nutr Metab Cardiovasc Dis. 2010;20(3):195-201.
18. Krebs NF, et al. Efficacy and safety of a high protein, low carbohydrate diet for weight loss in severely obese adolescents. J Pediatr. 2010;157(2):252-8.
19. Elhayany A, et al. A low carbohydrate Mediterranean diet improves cardiovascular risk factors and diabetes control among overweight patients with type 2 diabetes mellitus: a 1-year prospective randomized intervention study. Diabetes Obes Metab. 2010;12(3):204-9.
20. Petersen KF, et al. Reversal of nonalcoholic hepatic steatosis, hepatic insulin resistance, and hyperglycemia by moderate weight reduction in patients with type 2 diabetes. Diabetes. 2005;54(3):603-8.
21. Petersen KF, et al. Reversal of muscle insulin resistance by weight reduction in young, lean, insulin-resistant offspring of parents with type 2 diabetes. Proc Natl Acad Sci U S A. 2012;109(21):8236-40.
22. Saslow LR, et al. A randomized pilot trial of a moderate carbohydrate diet compared to a very low carbohydrate diet in overweight or obese individuals with type 2 diabetes mellitus or prediabetes. PLoS One. 2014;9(4):e91027.
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