Frutose e o ácido úrico (gota)
Saúde

Frutose e o ácido úrico (gota)


Os níveis elevados de ácido úrico, hiperuricemia, estão na base patofisiológica da gota, uma das doenças inflamatórias mais comuns entre os homens e cada vez mais frequente no sexo feminino [11]. Alguns estudos têm mostrado uma forte associação entre a hiperuricemia e o síndrome plurimetabólico, em particular no risco de diabetes [2] e doença cardiovascular [3]. O aumento do consumo de refrigerantes e frutose tem acompanhado a tendência crescente da prevalência de hiperuricemia e gota [11]. Estudos em animais têm mostrado uma relação clara entre a ingestão de frutose e a hiperuricemia, indiciando um papel causal do ácido úrico na indução de síndrome metabólico [10]. Em humanos, o tratamento com alopurinol, um inibidor da síntese de ácido úrico, parece atenuar os efeitos nefastos da frutose a nível da tensão arterial e prevenir o aparecimento de síndrome metabólico [13].


Para compreender o mecanismo pelo qual a frutose pode favorecer a elevação plasmática dos níveis de ácido úrico é necessário aludir ao seu metabolismo muito particular. A digestão completa dos hidratos de carbono da dieta dá origem às três hexoses típicas, a glicose, lactose e frutose. Enquanto que as duas primeiras são assimiladas pelas células do epitélio intestinal através dos transportadores SGLT presentes na membrana apical, num processo dependente de ATP, a frutose é principalmente absorvida por difusão facilitada através dos GLUT5. Embora a capacidade em absorver frutose pareça ser limitada, causado algum desconforto quando consumida em doses elevadas, a ingestão regular concomitante com glicose parece induzir e potenciar mecanismos que aumentam essa absorção. Julga-se que este fenómeno se deva à translocação de transportadores GLUT2 para a membrana apical dos enterócitos com capacidade para mediar a difusão tanto de glicose como de frutose [7]. A passagem para a circulação enterohepática é assegurada também por GLUT2 presentes na membrana basolateral das células epiteliais. Portanto, o consumo regular de açúcares pode potenciar a absorção de frutose e, em consequência, a elevação dos seus níveis no sangue.

         As diferenças assinaladas na capacidade e velocidade de transporte da frutose e glicose na barreira intestinal explicam parcialmente as diferenças das concentrações plasmáticas após ingestão. Enquanto que os níveis de glicose podem ultrapassar os 10 mM num teste de tolerância, os níveis de frutose muito dificilmente excedem os 0,5 mM na circulação periférica [4]. Muito pouca frutose escapa ao fígado, que a recebe directamente da circulação enterohepática e a capta através dos transportadores GLUT2 dos hepatócitos, mecanismo concorrente com a absorção de glicose.

Apesar da entrada nos hepatócitos ser mediada pelo mesmo transportador, as primeiras etapas do metabolismo da frutose e glicose diferem substancialmente. Quando no citoplasma, a glicose é imediatamente fosforilada pela glucocinase em glicose-6-fosfato e pela fosfofrutocinase em frutose-1,6-bifosfato, que posteriormente é hidrolisado pela aldolase em gliceraldeído-3-fosfato e dihidroxiacetona-fosfato. Por seu lado, a frutose é activada pela frutocinase em frutose-1-fosfato, convergindo com o metabolismo da glicose pela acção da aldolase a nível das trioses fosfato. A glucocinase e fosfofrutocinase são enzimas reguladas pelos produtos do metabolismo da glicose, ATP e citrato, que, quando em excesso, inibem a activação da glicose e consequente entrada no hepatócito [4]. Por seu lado, não é reconhecido qualquer mecanismo de controlo da frutocinase que iniba sua acção. Para mais, o KM desta enzima é muito baixo, 0,8 mM [1], conferindo-lhe uma grande afinidade para a frutose que entra na célula. Desta forma, a fosforilação em frutose-1-fosfato continuará enquanto houver frutose disponível à custa de ATP, o dador primário de fosfato.

         O rácio ATP:AMP é um dos principais indicadores do estado energético da célula, exercendo regulação sobre variados processos metabólicos. Há muito se sabe que a administração de frutose é acompanhada por um decréscimo abrupto de ATP hepático [8]. Este fenómeno deriva da rápida e descontrolada fosforilação da frutose pela frutocinase, levando à depleção de ATP devido à inibição da sua regeneração pela falta de fosfato sequestrado na frutose-1-fosfato. No entanto, não só o ATP diminui na célula como os níveis de AMP parecem também diminuir significativamente [8]. A depleção de fosfato e ATP leva à remoção da inibição alostérica das enzimas que degradam o AMP, nomeadamente a AMP deaminase e 5’-nucleotidase. A via degradativa mediada pela AMP deaminase, a enzima limitante do processo catabólico, origina inosina monofosfato (IMP) que é convertida em inosina pela 5’-nucleotidase [9]. A inosina é posteriormente degradada em ácido úrico no metabolismo das xantinas.

         A depleção de nucleótidos de adenina (ATP e AMP) leva também à estimulação da síntese de purinas por feedback. O decréscimo da concentração de adenina estimula as enzimas PRPP (5-fosforibosil-1-pirofosfato) sintetase e PRPP glutamil amidotransferase, intervenientes na produção de IMP. Se a enzima 5’-nucleotidase estiver activa, como previamente descrito, os níveis de inosina aumentam e, consequentemente, a produção de ácido úrico observa um aumento substancial [9].

         Não é ainda claro de que modo o ácido úrico pode exercer um efeito nefasto a nível metabólico. A teoria prevalente sugere que, embora o ácido úrico possa exercer um papel antioxidante no meio externo, é um pró-oxidante poderoso dentro da célula, em particular no músculo vascular liso. A reacção com o óxido nítrico (NO) poderá anular o seu efeito vasodilatador [6,10], explicando-se assim o potencial hipertensivo do ácido úrico e da frutose. Sabe-se que um componente importante da acção insulínica se deve ao NO, provavelmente por um aumento da perfusão tecidual e fluxo de nutrientes para as células [12].

O potencial da frutose em aumentar os níveis de ácido úrico poderá dever-se não só à depleção de ATP e a um estímulo da síntese de purinas, mas também à menor excreção de urato. Sugere-se que este fenómeno se deva a vasoconstrição renal e a um aumento na sua reabsorção [5]. A resistência à insulina secundária ao consumo de frutose poderá também ter o seu contributo para a redução da excreção renal de ácido úrico [11].

Não parece existir consenso relativamente à quantidade necessária e a forma de administração para que este processo se torne evidente e patológico. Uma análise sistematizada à literatura sugere que o aumento nos níveis de ácido úrico é apenas evidente em estudos onde a frutose foi administrada como um extra energético e não quando substituto dos hidratos de carbono presentes na dieta [14]. No entanto, e limitando ao objectivo deste texto, o processo metabólico que sustenta a relação causal entre a ingestão de frutose e a hiperuricemia está bem descrito e fundamentado.

[1] Asipu A, Hayward B, et al. (2003). “Properties of normal and mutant recombinant human ketohexokinases and implications for the pathogenesis of essential fructosuria”. Diabetes. 52:2426-2432.
[2] Dehghan A, van Hoek, M, et al. (2008). “High serum uric acid as a novel risk factor for type 2 diabetes”. Diabetes Care. 31:361-362.
[3] Feigh D, Kang D-H, et al. (2008). “Uric acid and cardiovascular risk”. New England Journal of Medicine. 359:1811:1821.
[4] Havel P. (2005). “Dietary fructose: implications for dysregulation of energy homeostasis and lipid/carbohydrate metabolism”. Nutrition Reviews. 63:133-157.
[5] Hu Q, Wang C, et al. (2009). “Allopurinol, rutin, and quercetin attenuate hyperuricemia and renal dysfunction in rats induced by fructose intake: renal organic ion transporter involvement”. American Journal of Physiology Renal Physiology. 297:F1080-1091.
[6] Khosla U, Zharikov S, et al. (2005). “Hyperuricemia induces endotelial dysfunction”. Kidney International. 67:1739-1742.
[7] Leturque A, Brot-Laroche E, et al. (2009). “GLUT2 mutations, translocation, and receptor function in diet sugar managing”. American Journal of Physiology. 296:E985-992.
[8] Mäenpää P, Raivio K, et al. (1968). “Liver adenine nucleotides: frutose-induced depletion and its effects on protein synthesis”. Science. 161:1253-1254.
[9] Mayes P. (1993). “Intermediary metabolismo of fructose”. American Journal of Clinical Nutrition. 58(suppl.):754S-765S.
[10] Nakagawa T, Hu Hanbo, et al. (2006). “A causal role for uric acid in fructose-induced metabolic syndrome”. American Journal of Physiology Renal Physiology. 290:F625-F631.
[11] Rho Y, Zhu Z, et al. (2011). “The epidemiology of uric acid and fructose”. Seminars in Nephrology. 31:410-419.
[12] Roy D, Perreault M, et al. (1998). “Insulin stimulation of glucose uptake in skeletal muscles and adipose tissue in vivo is NO dependent”. American Journal of Physiology Endocrinology and Metabolism. 274:E692-E699.
[13] Perez-Pozo S, Schold J, et al. (2010). “Excessive fructose intake induces the features of metabolic syndrome in healthy adult men: role of uric acid in the hypertensive response”. International Journal of Obesity. 34:454-461.
[14] Wang D, Sievenpiper J, et al. (2012). “The effects of fructose intake on serum uric acid vary among controlled dietary trials”. The Journal of Nutrition. 142:916-923.



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