Saúde
O PODER DE CADA UM
Há uns anos devorei um livro de Bryce Courtenay chamado The Power of One. Tem lugar nas décadas de 30 e 40, na África do Sul, e conta a história de um garoto fraco e doente, apelidado de Peekay, que supera muitas dificuldades. Peekay foi abandonado pela mãe e mal-tratado por quase todos. Branco, foi protegido por uma babá negra, curado de enurese por um curandeiro negro e aprendeu a boxear com um treinador negro. Chegou a campeão. O livro, um romance sobre a superação humana, tem muito de místico.
No meu pensamento, o título do livro se separou do conteúdo. Passei a meditar sobre ele e a perguntar "quanto poder para fazer o bem carregamos dentro de nós?" Cheguei à conclusão de que é muito e conto algumas estórias para provar.
"Seu" Francisco* é um senhor na casa dos sessenta - magro, simples e mineiro. Mineiríssimo. É porteiro, profissão considerada das mais chatas. Chata e mal paga. Há muito tempo decidiu que dedicaria boa parte de suas energias e recursos para o bem. Começou superando seu alcoolismo e passou a ajudar outras pessoas, sobretudo crianças. Para isso, precisava de um lugar. Comprou, com dificuldades, um terreno em Belfort Roxo. Com cada salário comprava alguns tijolos ou canos e construía mais uma parede. Construiu uma casa do bem, onde vive e atende necessitados. Trabalha no Leblon, onde os salários são mais altos e consegue um dinheirinho maior para ajudar as pessoas em Belfort Roxo. É lá onde atende, ajuda muito e pergunta pouco. Lá, crianças desamparadas conhecem o prazer de receber um colo, um carinho, um presentinho – sempre barato para dar para um número maior de crianças. Com seu jeito simples vai canalizando recursos, energia e amor das pessoas para as "suas" crianças. As pessoas do bem canalizam o bem de outras pessoas para as que necessitam; algumas nem sabiam que podiam ajudar tanto.
A esposa de "Seu" Francisco tem câncer terminal. Ainda que, sendo espírita, não acredite em morte como eu, católico, acredito, sofre, sofre, mas não abre mão de ajudar os que necessitam. Há mais do que uma pitada de estoicismo no seu comportamento. Mineiramente, sem alarde.
Há um quarto de século, um padre recém ordenado foi rezar missa no Lixão de Arcoverde. Não são muitas as missas rezadas em lixões. O Lixão era o que se pode imaginar de pior. O IDH de Arcoverde está na mesma faixa de Myanmar e de Botswana. Imaginem o que é o Lixão de um lugar tão pobre. Pilhas de lixo pobre mais altas do que homens, onde crianças semi-nuas, porcos, ratos, gatos e cães interagiam e competiam pelo mesmo espaço podre. Seiscentas famílias viviam no Lixão e do Lixão. Após a comunhão, uma criança, talvez de dez anos, interrompeu o padre e pediu: "me dá mais uma bolachinha daquelas, por favor. Tô com muita fome." Era a hóstia. Naquele momento, o padre decidiu que moraria ali, no Lixão, e que dedicaria a vida para aliviar o sofrimento dos pobres. Passou a viver como os pobres, entre os pobres. Inicialmente, se dedicou a construir e melhorar casas através de mutirões. Casa após casa, a área foi se transformando. Cerca de 30 moradias são construídas ou recuperadas cada ano. Criou a Fundação Terra, que se transformou na organização particular mais importante de toda a região. Talvez seu maior êxito seja a Pax Christi Schola que atende mais de mil crianças e adolescentes pobres, fornecendo uma educação bem superior à da rede pública. Mas, nem só de educação vive o homem. Há um programa de combate à fome que fornece, diariamente, mais de seiscentas refeições para crianças, gestantes e mães que amamentam, e 500 famílias que recebem cestas básicas (alimentos) duas vezes por mês.
Na Mater Christi, trinta mães gestantes têm acompanhamento pré-natal, alimentam-se com uma dieta básica e aprendem, através de palestras, os cuidados elementares de higiene e saúde da mãe e do bebê. Naquele ambiente pobre, com instabilidade familiar e uma cultura machista, muitas mães trabalham duas jornadas, uma no trabalho e outra em casa. Suas crianças são atendidas em regime integral. no Christus Creche. A qualidade da vida depende, e muito, da saúde. Um programa proporciona milhares de atendimentos anuais nas áreas de clínica médica, pediatria, ginecologia, odontologia, vacinação, primeiros socorros, e fornece medicamentos.
Do outro lado do fio da vida, anciões e velhinhos, em situação de abandono, vivem e são atendidos no Domus Christi: recebem acompanhamento médico, alimentação, higiene, fisioterapia, medicação, passeiam e recebem carinho e afeto. Embora, com freqüência, abandonados pelas suas famílias, não estão sozinhos.
Nesse quarto de século, centenas de vidas foram salvas, milhares evitaram a miséria e a fome, e incontáveis melhoraram de vida. Tudo isso foi realizado a partir do poder de um.
Há inúmeros exemplos de pessoas que garimparam a energia e o poder que existe dentro de todos nós: de católicos, protestantes, evangélicos, espíritas e, até, de alguns sem religião. Muitos começam a ajudar e descobrem, assustados, o poder que existe dentro deles. O poder de um.
E você?
*nome mudado para proteger o anonimato.
Gláucio Ary Dillon Soares
IESP/UERJ
Publicado no GLOBO
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