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Charles Nemeroff é um psiquiatra. Não é um psiquiatra qualquer. Tem um amplo currículo, títulos e publicações que qualquer pesquisador gostaria de ter. Médico, é também PhD. Um nome conhecido em neurobiologia. Desde 1991 ensina e pesquisa na prestigiosa Emory University School of Medicine, em Atlanta, Georgia. Atlanta é um centro internacional de pesquisas médicas, onde funciona o CDC, que reúne todas as informações sobre novas doenças e epidemias. Nemeroff, que fará 60 anos em 2009, era o chefe do Departamento de Psiquiatria. É geninho: aos 30 anos recebeu um importante prêmio da Society of Biological Psychiatry. Foi presidente do American College of Neuropsychopharmacology and the American College of Psychiatrists. Publicou mais de 750 trabalhos. Um homem acima de qualquer suspeita.
Infelizmente, Charles Nemeroff não estava acima de qualquer tentação. Como outras pessoas em posições de poder, parece que se achava acima da ética. A ética e a lei seguem as linhas de classe e do poder político. O que vale para um, não vale para o outro. No Brasil temos muitos exemplos: mensalão e mensalinho para os poderosos, prisão para os demais — pelas mesmas ações.
Nemeroff renunciou à chefia do Departamento de Psiquiatria em Emory. É a mesma estratégia usada pelo Severino Cavalcanti na Presidência da Câmara, que renunciou ao mandato para não perder os direitos políticos. Nemeroff está sendo acusado de conflito de interesses e de fraude, de não informar a universidade que recebera centenas de milhares de dólares da indústria farmacêutica ao mesmo tempo em que recebia milhões de dólares do governo federal para pesquisas relevantes para ela.
Nos Estados Unidos, professores universitários não estão acima de qualquer acusação, nem da prisão. O caso foi investigado pelo senador Charles Grassley (R-IA), segundo o qual Nemeroff recebeu da Glaxo Smith Kline (GSK) a bagatela de US$ 119 mil somente em 2003,
por conta de honorários por palestras e gastos vários. E o conflito de interesses? Nemeroff tinha sido o pesquisador responsável por uma pesquisa para avaliar cinco antidepressivos daquela companhia.
Não obstante, muitos alegam, não sem razão, que as empresas financiam novas pesquisas, ciclos de suas palestras etc. daqueles que têm posições favoráveis aos seus produtos. A pergunta é o que causa o quê? O que veio antes?
As universidades, para garantir que a pesquisa é científica e independente, e para se proteger de críticas, acusações e processos, exige que seus pesquisadores declarem o que recebem de patrocinadores privados. Há, claro, um limite mínimo e ninguém declara "doações" de R$ 10. Em Emory são US$ 10 mil, limite mais baixo do que parece, pois inclui o valor de passagens aéreas, hospedagem etc.
A falta de ética e o conflito de interesses se estendem às publicações. Juntamente com um colega, Nemeroff publicou um trabalho em que recomendava três produtos usados para tratar desordens psiquiátricas, sem informar à revista (e aos leitores) que eles tinham interesses financeiros nesses produtos. Não havia imparcialidade.
Os problemas éticos na prática clínica podem ser piores, com graves conseqüências para os pacientes. Infelizmente, a cobiça afeta os médicos também. Um exemplo recente: na cidade de Los Gatos, nos Estados Unidos, Ali Moayed falsificava resultados de testes para convencer pacientes de que tinham câncer de próstata (nem todos tinham). Eles seguiam um tratamento caro na clínica e Moayed lucrava com isso. Descoberto, perdeu a licença para continuar clinicando. Foi condenado a três meses de prisão e a outros nove de prisão domiciliar porque ele negociou com as autoridades, aceitando a culpa dos crimes de abuso de idosos e de fraude do seguro. Moayed reduziu sua pena e o estado economizou tempo, recursos e dinheiro no que seria uma longa batalha judicial, com especialistas e pareceres técnicos dos dois lados. É um procedimento comum adotado pelas autoridades americanas, chamado de plea-bargaining. Paralelamente, entrou em acordo com os pacientes, pagando US$ 100 mil a cada um deles.
No Brasil, infelizmente, o médico poderia contratar bons advogados e o processo levaria muitos anos. Como o câncer de próstata afeta, sobretudo, idosos, a inépcia do sistema judicial teria conseqüências dramáticas: muitos dos pacientes/vítimas faleceriam antes dos julgamentos.
Há quem rejeite a necessidade de ensinar ética profissional em medicina, mas em todas as profissões os interesses do profissional podem se chocar com os de seus pacientes ou clientes. Sem internalizar normas de conduta, é difícil lidar bem com essas situações.
É preciso cuidado para não vender a própria alma — e o corpo dos pacientes também.
Publicado no Correio Braziliense de 19 de novembro de 2008