Crime e câncer
Saúde

Crime e câncer


Foi publicado com um título diferente n'O Globo de 20/01/2008

Crime e câncer

Crime e câncer na mesma frase? Não, não é erro. Pode haver uma conexão que passa por fatores intermediários, como o medo, a depressão e o estresse. Esse vínculo, se demonstrado no Brasil mostraria que os níveis altíssimos de crime e violência têm conseqüências que vão muito além das vítimas visíveis. Talvez valha a pena repetir uns dados: há dois anos publicamos um livro, As Vítimas Ocultas, que abre com a seguinte frase – "Entre 1979 e 2001, mais de 600 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. O número é cataclísmico." De lá para cá, aproximadamente mais 40 a 50 mil por ano. Incluindo acidentes e suicídios, perto de dois milhões de mortos desde 1979. Esses dados se referem aos mortos apenas – a violência não letal é muitíssimo maior. Não temos como avaliar o monto de ações violentas não-fatais, como estupros, assaltos, agressões, violência doméstica etc. As situações de violência provocam reações: umas, no momento, fáceis de notar; outras, mais demoradas e insidiosas, mas não menos prejudiciais. No Brasil, algumas conseqüências foram aferidas pela Pesquisa Social Brasileira: 39% procuraram evitar conversar sobre violência com amigos e parentes; 53% procuraram evitar ver programas de televisão que falassem sobre violência; 60% procuraram evitar qualquer coisa que lembrasse situações de violência; 63% procuraram evitar pensar em violência etc.

Outra pesquisa, feita na área metropolitana de São Paulo, sublinhou série semelhante de conseqüências muito negativas: em cada três paulistanos, dois evitam, conscientemente, pensar em violência; psicologicamente, pode ter aspectos saudáveis; politicamente é estratégia de avestruz. Porém há dados mais graves: três em quatro paulistanos sentem medo quando pensam na violência de modo geral. É um quadro que encolhe a vida e reduz a felicidade das pessoas. Um em cada quatro paulistanos teve dificuldade em se concentrar porque ficou pensando na violência – no último ano. O sono também foi afetado: no último mês, 48% tiveram dificuldade de dormir porque ficaram pensando na violência e 51% sonharam com situações de violência. O nível de estresse é altíssimo. Observem que 64% (dois terços) se sentiram mal quando pensaram na violência.

E o que tem isso a ver com a saúde física em geral e o câncer em particular?

A vinculação entre estresse, depressão, falta de sono, de um lado, e problemas de saúde, inclusive o câncer, do outro, é apoiada por muitas pesquisas, embora haja controvérsias a respeito. Uma das pesquisas mais recentes, publicada nos Archives of General Psychiatry, demonstra que, num casal comum e corrente, o estresse de uma rusga de meia hora de duração basta para atrasar a capacidade dos seus corpos em fechar feridas em pelo menos um dia. Se a relação for normalmente conflitiva, o efeito de cada nova rusga poderá ser dobrado. Esses estudos são feitos no Ohio State University 's Institute for Behavioral Medicine Research que concentra esforços em ver como o estresse psicológico afeta o sistema imune.

Podemos começar a analisar a relação entre crime, estresse e câncer em ocupações altamente estressantes, particularmente as que trabalham diretamente com o crime e a violência, como policiais e agentes penitenciários.

Uma pesquisa feita por com dados suecos sugere que situações estressantes, como as vinculadas ao trabalho, nos dez anos anteriores à pesquisa aumentavam o risco de câncer de colo-retal. O risco relativo aos que não tiveram situações estressantes no trabalho (controlando a idade e o gênero) era de 5,5. Ou seja: estresse no trabalho aumentava em 450% o risco de câncer, bem mais do que a morte do cônjuge, que aumentava em 50%. Mudar de residência também aumentava o risco relativo (2,8). Kune e associados usaram dados do Melbourne Colorectal Cancer Study: entrevistaram 715 pacientes e 727 controles. Concluíram que doenças graves ou a morte de alguém na família, problemas familiares sérios (conflitos, infidelidades, separações e divórcios) e pesados problemas no trabalho durante os cinco anos precedentes aumentavam o risco de câncer colo-retal. Além disso, entre os que enfrentaram esses problemas objetivos, os que ficaram mais perturbados com eles tinham um risco mais elevado de câncer. O problema, em si, já contava; a reação ao problema, adicionava. Aliás, em outra análise dos mesmos dados, os autores descobriram que a religiosidade protege contra o câncer (Risco Relativo 30% menor, P = 0,002). Entre os que tiveram câncer, a sobrevivência dos religiosos foi de 62 meses contra 52 dos demais.

A ponderável, mas não totalmente consistente, massa de resultados ligando estresse ocupacional a problemas de saúde, física e psicológica, inclusive ao câncer, levou um tribunal do trabalho da Austrália, o South Australian Workers Compensation Tribunal, a concluir que o estresse ocupacional contribuiu para o câncer colo-retal de um agente penitenciário, qualificando-o para receber uma indenização. Isso, na Austrália: imaginem no Brasil, onde a violência dentro das prisões possivelmente contribui para deteriorar o estado físico e mental de agentes penitenciários e de prisioneiros.

Não obstante, a população também sofre com o crime e a violência, via estresse, medo, depressão, insônia e outros males que reduzem e muito nossa resistência. Essa é uma área relativamente jovem, mas seus resultados já sugerem que o dano invisível causado pelo crime e pela violência é simplesmente gigantesco
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GLÁUCIO ARY DILLON SOARES



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