O stress e as doenças cardiovasculares: lições do Oriente
Saúde

O stress e as doenças cardiovasculares: lições do Oriente



Durante as décadas de 60 e 70 foram realizados uma série de estudos epidemiológicos com japoneses nativos e residentes nos EUA (Califórnia) para avaliação do impacto dos factores de risco cardiovascular na incidência da doença. Nestes estudos incluí-se a tese do Dr. Michael Marmot que deu origem ao artigo Acculturation and Coronary Heart Disease in Japanese-Americans. Os números nem se questionavam e a prevalência de doença coronária era muitíssimo superior nos japoneses residentes na América e rara no Japão. Que explicação mais óbvia do que a ocidentalização dos hábitos alimentares, para um regime mais gorduroso e hipercalórico? Ou talvez não…


Muita gente ia ficar desapontada se a conclusão de um estudo financiado com dinheiros públicos fosse que os japoneses do Japão morriam menos de doença coronária do que quem migrou para a América. Quem não esperaria isso à partida? Os japoneses com aquela dieta tão pobre em gordura eram um exemplo a seguir. Mas o problema é que as diferenças no consumo de gordura saturada não conseguiam explicar as discrepâncias na lipidémia entre o Japão e os californianos de origem japonesa. Além disso, o gradiente crescente de mortalidade coronária não era abolido pelo controlo das variáveis colesterol, pressão arterial e tabagismo. Por outras palavras, nenhum factor de risco estabelecido era capaz de explicar as diferenças verificadas entre os japoneses nativos e os que residiam nos EUA.

Marmot optou por uma abordagem diferente. Estudou apenas os indivíduos de origem japonesa que viviam na Califórnia sob a hipótese de a cultura ser um factor relevante para a maior incidência de doença coronária em terras do Tio Sam. Os resultados falam por si:



O gráfico acima representa a prevalência de doença coronária consoante o nível de aculturação, por classe etária. Em pessoas mais aculturadas, com um estilo de vida ocidental e que renegaram os seus hábitos ancestrais (“non-traditional”), a incidência de doença coronária é superior em todas as classes etárias. Consequentemente, japoneses-americanos que mantinham as suas tradições (“traditional”) são menos afectados por aterosclerose coronária. Mais uma vez o colesterol, pressão arterial e hábitos tabágicos não explicavam este fenómeno.

Mas a alimentação poderia explicá-lo se a teoria dieta-coração fosse verdadeira, algo que cada vez menos pessoas punham em casa após o sucesso do Seven Countries Study entre a comunidade médica. Mas também não foi por aí. Na verdade, foi encontrada uma “associação negativa” entre o padrão alimentar e a doença coronária. Repare bem a expressão que escolhi, citada do relatório original: “associação negativa”. É boa prática em ciência não abordar as experiências com preconceitos. Mas a dieta mais rica em gordura estava já entendida como potenciadora de doenças cardiovasculares. As voltas saíram trocadas:



Olhe com atenção para os dois gráficos em cima. Ambos representam as mesmas variáveis para duas classes etárias distintas: a prevalência de doença coronária (CHD %), preferências alimentares (japonesa ou ocidental), e aculturação (estilo de vida tradicional japonês e adopção dos hábitos americanos). O resultado mais curioso é que as pessoas com uma dieta ocidentalizada (“western”) tinham menos doença coronária do que quem preferia comida tradicional, pobre em gordura (3.4% vs 8% para <45 anos e 6.9% vs 11.3 para 45-54 anos). A diferença no teor de gordura entre o padrão alimentar japonês e ocidental era de 10%, semelhante ao verificado entre a população grega e americana no Seven Countries Study de Ancel Keys. Se neste foi encontrada uma relação, também no trabalho de Marmot o deveria ter sido. E foi… mas ao contrário.

Mas o mais interessante para o assunto em discussão é a maior prevalência de doença coronária naqueles que adoptaram um modo de vida ocidental, independentemente da alimentação. Falamos de aspectos como educação, língua, ocupação profissional e, acima de tudo, estrutura social. O grupo que se aculturou à vida californiana tinha mais do dobro da frequência de doença coronária. Além disso, os menos aculturados apresentavam uma prevalência semelhante à verificada no Japão. Por seu lado, a prevalência nos japoneses que assimilaram a cultura americana era similar à dos caucasianos nativos.

As conclusões são evidentes e apontam para um impacto superior dos aspectos sociais e culturais comparativamente aos factores de risco tradicionais modificáveis como a dieta, lipidémia, tensão arterial e tabagismo. A cultura americana difere da japonesa do dia para a noite. O Japão enfatiza a coesão de grupos, sucesso comunitário e estabilidade social. Estas características quase que antagonizam a sociedade americana, virada para a mobilidade social e geográfica e ambições individuais de carreira e estatuto. Este estudo de Marmot suporta a ideia de que uma sociedade estável, cujos membros gozam o apoio dos seus companheiros em grupos unidos pode proteger contra o stress social que leva à doença, neste caso do foro cardiovascular.

Mas as características que descrevi não são exclusivas da cultura japonesa, mas comuns em sociedades tradicionais como a italiana, grega e jugoslava na altura do Seven Countries Study. A baixa prevalência de doença coronária nestes países pode ser resultado de um menor stress social ou da latitude, mas nunca dos valores de colesterol ou consumo de gordura animal.

Um dos meus estudos preferidos em epidemiologia cardiovascular é sem dúvida o do Dr. Stewart Wolf, conhecido na história como “o efeito Roseto”. Aquele pequeno oásis na América era a negação de uma teoria apelativa (e lucrativa) que ligava os comportamentos modificáveis ao risco de doença cardiovascular. O stress era a resposta para o mistério de Roseto. A preservação da cultura italiana protegia-os da doença coronária, mesmo quando os hábitos alimentares assustavam qualquer médico “paradigmatizado” (passo o neologismo). O trabalho de Marmot com japoneses residentes nos EUA vai no mesmo sentido, uma direcção que infelizmente não desperta grande interesse na comunidade médica estabelecida.

Que interesse poderá ter para alguém recomendar contra o stress? Alterar o estilo de vida. Deixar de trabalhar para que a predação do sistema económico ocidental não nos roube uns bons anos de existência. Relaxe. Goze os seus dias com quem mais gosta. Liberte-se dos constrangimentos sociais. O primeiro a fazer tal coisa seria provavelmente o último. É muito mais fácil procurar culpados que possamos manipular com drogas ou alteração de comportamentos simples. O colesterol, a pressão arterial, a dieta. A indústria farmacêutica e alimentar agradecem. São áreas onde podem intervir e com as quais facturam biliões em nome de um Mundo mais são. “É preciso reduzir o colesterol”. A Pfizer aplaude e lança uma nova estatina. “Relaxem e gozem a vida”. “Este deve ser mais um hippie do bloco de esquerda”.

É de lamentar que destes estudos com a população japonesa a única coisa que se fala é da maior incidência de doença coronária nos EUA, comparativamente ao Japão. Um ponto a favor da teoria dieta-coração. Mais gorduras, mais aterosclerose. O pormenor da aculturação é propositadamente esquecido. Afinal, o que se pode fazer em relação a isso? Mudar toda uma estrutura social e económica? É um facto que as populações tradicionais nativas têm uma melhor saúde que nós ocidentais. Os Kitava, Inut e Masai são povos com hábitos alimentares incomparáveis entre si e connosco. Mas o que têm em comum? Ou melhor, o que é que nós temos que eles não têm? Um stress que inventámos para nós próprios. Admitir que somos responsáveis pela decadência da nossa saúde é essencial para um combate eficaz ao flagelo das doenças crónicas da civilização moderna. O ambiente que criamos define aquilo que somos. J



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Marmot M e Syme L (1976). Acculturation and Coronary Heart Disease in Japanese-Americans. American Journal of Epidemiology. 104(3):225-247.



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