Revisitando o passado: uma caloria não é uma mera caloria (Kekwick e Pawan, 1956)
Saúde

Revisitando o passado: uma caloria não é uma mera caloria (Kekwick e Pawan, 1956)



Hoje decidi tirar o pó aos arquivos e ressuscitar um artigo de 1956 esquecido nos anais da história, ou melhor, engavetado por ser bastante desconfortável. Trata-se do trabalho seminal de Alan Kekwick e Gaston Pawan, publicado no prestigiado The Lancet há mais de 50 anos. Este estudo é um dos mais brilhantes do seu tipo e merece ser recordado. Foi talvez a primeira prova consistente em humanos de que nem todas as calorias são iguais.


Estudos precedentes de Lyon e Dunlop e de Pennington já apontavam para a maior eficácia das dietas low-carb em induzir perda de peso. Não se sabia no entanto que factor tinha mais importância: a restrição energética ou a proporção de macronutrientes. Os investigadores isolaram um grupo de obesos admitidos no Hospital de Middlesex, maioritariamente mulheres, e realizaram uma série de 3 experiências muito elegantes que passo a descrever muito sucintamente.

Ensaio 1 – Foi fornecida aos participantes a dieta comum da época, constituída por 47 % hidratos de carbono, 33 % gordura e 20 % proteína. As proporções foram mantidas em regimes de diferente valor energético: 2000 kcal/dia, 1500 kcal/dia, 1000 kcal/dia e 500 kcal/dia. Os resultados vão ao encontro da teoria actual. Verificaram que havia uma relação entre a redução calórica e a perda de peso quando as proporções de macronutrientes eram mantidas. No entanto, essa relação não era linear, ou seja, a cada 400 g de peso perdido não correspondia um deficit energético de 3500 kcal, aproximadamente.

Ensaio 2 – Se a perda de peso depende directamente do deficit calórico, dever-se-ia observar uma perda de peso constante independentemente da composição da dieta. A equipa sujeitou 14 pacientes a dietas de 1000 kcal, dividindo-os em 3 grupos, cada um dos quais com uma dieta composta por 90 % gordura, proteína ou hidratos de carbono. Os resultados foram surpreendentes. O grupo com 90 % de gordura foi o que perdeu mais peso, seguido de perto pelo grupo com proteína e a uma enorme distância do grupo com 90 % de hidratos de carbono, na qual alguns até ganharam peso (ver o gráfico que se segue). Os autores concluem que “tão diferentes foram as taxas de perda de peso nestas dietas isocalóricas que a composição da dieta supera em importância o consumo de calorias”.



Ensaio 3 – De forma a confirmar este último ponto, uma terceira série de indivíduos, que se verificou conseguir manter o peso mais ou menos estável numa dieta "normal" (47:33:20) de 2000 kcal, foram colocados numa dieta de 2600 kcal constituída apenas por gordura e proteína. Todos menos uma perderam peso, independentemente do excedente de 600 kcal. Esse caso particular foi explicado pela propensão em reter água durante a menstruação que coincidiu com a experiência. Na verdade, como podemos observar na seguinte tabela, existe até uma tendência ligeira a ganhar peso na intervenção mais rica em hidratos de carbono.



Estou certo que os mais atentos já estão a pensar que a acentuada perda de peso nas intervenções low-carb se deve à perda de água que geralmente acompanha a fase inicial destas dietas. Essa hipótese não foi descurada pela equipa. O teor corporal em água foi avaliado e concluiu-se que “em todos os pacientes, a água disponível inicialmente representava 50-52.5 % do peso corporal. Ao fim de 4 semanas nas dietas, as proporções de água e peso corporal mantiveram-se (50-52 %)”. O rigor da equipa levou-os a avaliar também o teor hídrico dos alimentos e ajustar o consumo total para 3 L/dia. O mesmo foi feito em relação ao sal. A hipótese de uma absorção diferencial dos nutrientes também foi posta de parte experimentalmente. Na verdade, os relatos de colegas referem frequentemente que o rigor da equipa era doentio. Os pacientes eram mantidos isolados, pouco ético para os dias que correm, e os resultados eram descartados sob qualquer suspeita de um desvio ao protocolo.

Não é preciso um grande esforço mental para compreender as implicações deste estudo, apenas citado por quem tenta navegar contra a maré e questiona o paradigma actual do que é a dieta ideal para perda de peso. Convém salientar que, à luz deste trabalho particular, não são refutados argumentos como carências nutricionais ou implicações metabólicas de regimes extremos. É no entanto desmascarada a ideia de que "uma caloria não é mais do que uma caloria" e de que o metabolismo se resume à primeira lei da termodinâmica. O organismo não é um sistema isolado e nem toda a energia consumida está disponível para trabalho. Fica prometido um pequeno artigo sobre o assunto, se bem que terei de recordar primeiro alguma Física, uma disciplina que nunca foi um dos meus maiores talentos confesso.

É importante também deixar claro que não considero uma dieta composta por 90 % de gordura uma opção viável. Pelo que se sabe hoje, essas dietas muito extremas resultam numa acentuada perda de massa magra. A explicação é muito simples na verdade e não requer mais do que biologia do ensino secundário (julgo eu). O fornecimento inadequado de proteína ou glicose diminui a produção de esqueletos carbonados do ciclo de Krebs. Alguém se lembra da frase “as gorduras queimam à chama dos hidratos de carbono”? Este princípio não está correcto e deveria ser reescrito como “as gorduras queimam à chama do oxaloacetato”, um intermediário do ciclo de Krebs que se combina com o acetil-CoA derivado da oxidação lipídica (e da glicose também). Se a capacidade de produzir este composto for inferior ao necessário, o organismo canibaliza tecido muscular de forma a providenciar aminoácidos precursores de esqueletos carbonados do ciclo de Krebs, de forma a conseguir converter a gordura em energia útil. No entanto, o requerimento de proteína ou glicose dietética não é assim tão grande para alimentar esta via metabólica. Tratando-se de um ciclo, os compostos são regenerados e reciclados no processo. Todas as dietas ricas em gordura devem-no ser também em proteína. Arbitrariamente, eu diria que uma dieta não deve ultrapassar nunca os 70-80% de gordura de forma a conservar a massa muscular. É um valor que ainda não foi estabelecido e, como tal, é alvo de grande especulação.

Este estudo surgiu numa altura em que a mentalidade era bem mais aberta. As dietas low-carb não eram tão estranhas quanto isso e muitos médicos as recomendavam com bastante sucesso. Hoje dificilmente se realizariam ensaios deste tipo, em grande parte por implicações éticas e preconceitos descabidos. É evidente que existem limitações e a capacidade técnica da altura era uma sombra da que dispomos actualmente. O número de pacientes é também muito reduzido. De qualquer forma, foi um trabalho que lançou a semente para uma corrente científica marginal que não morreu com o estrangulamento dos anos 70-80, altura em que a política se sobrepôs à ciência. Alguns homens mantiveram-se firmes às suas convicções, mesmo comprometendo a sua carreira e reputação. Tenciono recordar aqui alguns dos seus trabalhos para que não caiam no esquecimento.

Este texto é uma reposição do artigo publicado no dia 12 de Maio, com o mesmo nome, apagado após o restauro do sistema por parte da Google. Os meus sinceros agradecimentos ao André por ter gravado uma cópia. Infelizmente o comentário de um leitor e a minha resposta foram apagadas irremediavelmente. Peço desculpa ao visado e sugiro que o reponha se for possível.



Tweet



loading...

- Calorias: Um Auto-experimento De Carboidratos Versus Gorduras
O conceito de vantagem metabólica oferece suporte à hipótese de que dietas com redução na quantidade de carboidratos (dietas low-carb) são mais vantajosas que dietas com redução de gordura (dietas low-fat) para a perda de peso. Seria...

- Comentário à Notícia Da Rtp1: "especialistas Dizem Que A Dieta De Atkins Pode Aumentar Risco De Doenças Cardiovasculares"
Há alguns dias no programa Bom Dia Portugal da RTP1 foi dada uma notícia que citava um estudo Norte-Americano sobre os efeitos nefastos da dieta de Atkins, cetogénica, no sistema cardiovascular e suas possíveis implicações cancerígenas. Incompreensivelmente,...

- As Dietas Hiperproteicas Marcam De Novo, Desta Vez Contra Regimes Ricos Em Fibra
O debate acerca de qual a melhor composição macronutricional de uma dieta para perder peso ou melhorar determinados factores de risco parece não ter fim. As recomendações oficiais das autoridades de saúde que se baseiam em regimes com um elevado...

- Dieta Low-carb Vs Hipocalórica No Tratamento A Curto-prazo De Fígado Gordo
Uma sequela da diabetes e obesidade é o fígado gordo, uma patologia que pode ir da simples acumulação de triglicéridos nos hepatócitos à esteatose inflamatória (esteatohepatite), fibrose e cirrose. A manipulação da dieta é a abordagem mais...

- Não Comer Hidratos De Carbono à Noite?
"Para perder peso, não comer hidratos de carbono à noite". Este é um dos mitos mais comuns dessa religião a que se chama dietética. Entre as explicações que ouço frequentemente estão a menor sensibilidade à insulina ao final do dia e o facto...



Saúde








.