Saúde
A carne e o risco de cancro colo-rectal: cá vamos nós outra vez...
Quem já não ouviu dizer que a carne aumenta o risco de cancro colo-rectal? Há quem vá mais longe e diga que o consumo de carne é responsável por 75% das doenças humanas. Já perdi a conta aos estudos que abordam esta questão e o número deste mês do
European Journal of Clinical Nutrition traz mais um. “Os nossos dados não suportam a hipótese de que o consumo de carne seja um factor de risco para o cancro colo-rectal”. São eles que dizem e não eu.
O ano de 2007 foi marcado por mais um disparate por parte das entidades responsáveis pela nossa saúde. O
World Cancer Research Fund e o
American Institute for Cancer Research declararam que as evidências que ligam o consumo de carne vermelha ao cancro colo-rectal eram “convincentes”. As críticas a esta posição foram duras e uma revisão recente de 35 estudos prospectivos concluiu que a associação era muito fraca e limitada pela incapacidade em separar os efeitos do consumo de carne de outros factores dietéticos e comportamentais. Como tem sido hábito, primeiro escolhe-se o culpado e depois procura-se as provas que fundamentam a decisão que já foi tomada. Inverte-se o ónus da prova: culpado até prova em contrário.
É curioso que a grande maioria dos indícios no sentido de uma relação entre a carne e o cancro venha de estudos Norte-Americanos e que os Europeus muito raramente encontrem uma associação positiva. A explicação tem sido sempre a mesma: a Europa tem um consumo
per capita de carne bastante inferior. Na verdade, nenhuma relação estatística tem sido verificada em estudos na população Asiática. Será que o será em algum lugar onde a decadência dos comportamentos Ocidentais não tenha chegado? Mas a população Australiana apresenta um consumo ainda superior ao dos Norte-Americanos. Pegando nos dados recolhidos no
Western Australian Bowel Health Study, a equipa do Dr. Heyworth propõe-se a estudar a relação entre o consumo de carne em termos de frequência, tamanho das porções e confecção, com o risco de cancro colo-rectal (CCR).
A grande maioria dos trabalhos prévios ignoraram os métodos de confecção da carne. Sabe-se que cozinhar a altas temperaturas, como churrasco e fritura, favorece a produção de sunstâncias como as aminas heterocíclicas, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e compostos
N-nitroso, todos eles suspeitos de actividade cancerígena no Homem. Os churrascos fazem parte da cultura Americana e não tanto da Europeia. A haver uma relação com o CCR, será a carne o culpado ou a forma como a cozinhamos?
Este estudo teve um desenho caso-controlo e baseou-se nos hábitos alimentares da amostra no passado, recorrendo a inquéritos e metodologias devidamente validadas. O CCR é uma doença com um desenvolvimento progressivo e com um período de latência, onde os hábitos antigos parecem mais importantes do que os comportamentos recentes.
Não se pense que este é um estudo conclusivo e que desfaz o mito do potencial cancerígeno da carne. Na verdade está ao nível de todos os outros e sofre das mesmas limitações. Olhemos com atenção para os resultados. Antes de mais, é interessante ver a distribuição sociodemográfica da amostra (clique na imagem para ampliar).
Existe uma diferença significativa entre o BMI dos casos e dos controlos (p<0.001). Mais de 30% dos casos eram obesos, contra 20% dos controlos. Também existem mais ex-fumadores no grupo com CCR, e menos pessoas que nunca fumaram. Na minha modesta opinião, os resultados deste estudo podem ser influenciados pela distribuição tendenciosa destas variáveis. Que factores estaríamos a detectar? Tanto o BMI como os hábitos tabágicos são factores de risco para o desenvolvimento de doenças do foro oncológico. De qualquer forma, pelo menos o consumo de álcool, fruta, vegetais, fibra e gordura é semelhante entre os grupos. Aqui, estas variáveis secundárias não deverão ter influência.
Mas o principal resultado do estudo é um não-resultado. “Os resultados deste estudo não suportam uma associação entre o consumo de carne ou práticas de confecção com o risco de cancro colo-rectal […] Não encontrámos uma associação entre o consumo de carne vermelha ou branca e o cancro colo-rectal”.
As preferências de ambos os grupos recaíram sobre a carne vermelha no churrasco e frita. É curioso que quando consideramos o quartil mais elevado e estimamos os OR ajustados se verifica uma tendência inversa significativa mas marginal entre o consumo de carne vermelha assada e o risco de CCR. Quererá isto dizer que consumir carne assada reduz o risco de cancro? Só se formos editores de uma revista sensacionalista ou tivermos responsabilidades em saúde pública. Se formos honestos, estes resultados não significam absolutamente nada.
Estudar a relação entre o consumo de carne e o CCR é um trabalho frustrante. Os ensaios clínicos controlados são inviáveis e o que nos resta são estudos observacionais epidemiológicos. Estes são de dois tipos: caso-controlo, como o trabalho em causa, e de coortes. Nos últimos, os dados são recolhidos numa fase inicial e as pessoas são observadas prospectivamente por um determinado período de tempo ou até à sua morte. Portanto, os dados são obtidos antes de o evento ter ocorrido. Segundo Alexander e Chushing, estes estudos de coortes não têm encontrado associações significativas entre o consumo de carne e o risco de CCR.
Por seu lado, a maioria das associações positivas têm sido verificadas em estudos caso-controlo, dependentes das memórias tendenciosas dos participantes e do recrutamento voluntário dos controlos. Além disso, grande parte desses estudos utilizaram os hábitos alimentares recentes, quando o CCR tem um considerável período de latência. Mas quando se pergunta a alguém a quantidade (e método de confecção) de carne que consumia há 10 anos atrás, poderemos esperar rigor? Para quem sofre da doença e passou parte da sua vida a ouvir que a carne vermelha causa cancro, é tentador arranjar logo ali um culpado, especialmente em áreas urbanas mais “educadas”. De qualquer forma, foi algo que não se passou neste estudo com a população do Oeste Australiano.
Um outro aspecto interessante é que as associações de risco relativo são sempre mais elevadas nos homens do que nas mulheres, sem que se verifique uma diferença na quantidade de carne consumida. Poderá ser uma propensão biológica controlada a nível hormonal? Talvez, umas torna improvável um efeito directo.
Quando comparamos os vários trabalhos que estudam a relação entre o consumo de carne e o cancro colo-rectal é notória a discrepância nas definições de exposição dietética, nível de exposição,
cut-offs e categorização. Além disso, não existe um conceito convencionado para “carne vermelha”. Alguns estudos consideram um tipo específico de carne, outros um conjunto variável de alimentos, que podem ou não incluir carnes processadas. Além disso, o consumo de carne depende de outros factores comportamentais. Cross demonstrou que as pessoas com maior consumo de carne ingeriam mais calorias, fumam com maior frequência, têm maior BMI, consomem menos vegetais, são mais sedentários e com menores níveis de educação. Qual destes factores será o responsável?
A resposta a esta pergunta não pode ser dada por estudos epidemiológicos. Já era altura de perceber que não é possível estabelecer uma relação causa-efeito a partir de dados meramente observacionais. Menos ainda quando as incoerências entre os estudos são tão grosseiras e a sistematização dos seus dados não indica uma associação robusta que justifique limitar o consumo de carne. É interessante notar que apesar do
World Cancer Research Fund e o
American Institute for Cancer Research acreditarem, por algum motivo que me transcende, que as provas são "convincentes", recomendam que o consumo médio ronde as 300g e não exceda as 500g de carne vermelha por semana. Ora, estes níveis de consumo estão dentro dos valores correntes nos EUA. A população (Americana neste caso) não precisa de reduzir o consumo de carne, mas nós achamos que provoca cancro. É isto que as autoridades nos andam a dizer.
Se a carne vermelha favorece o desenvolvimento de cancro colo-rectal não sei. O problema é que ninguém sabe e gosta de fazer pensar que sim. Os dados não apontam nesse sentido e a nossa história evolutiva e epidemiológica muito menos. Por enquanto vou comendo-a e gozando da boa saúde que me tem dado. Mas se a carne aumenta o risco de cancro, a minha vida depende da sorte e das probabilidades, essa ciência tão mal compreendida.
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