A dieta sem glúten e a performance desportiva
Saúde

A dieta sem glúten e a performance desportiva



Tenho visto circular em fóruns Nacionais e Internacionais um artigo publicado no final do ano passado sobre o efeito da eliminação do glúten na performance desportiva. Este trabalho é sem dúvida muito interessante pela experiência social que proporcionou relativamente à evidência científica versus dogma e resistência à mudança. Por muitos foi utilizado como a prova de que a sensibilidade ao glúten é um mito e mais uma moda que vai e vem. Estava provado que a retirada do glúten da dieta em nada melhorava a performance dos atletas, o que na verdade pouco transfere tem para a pessoa comum. Outros com a devida ressalva ao que realmente poderíamos concluir do estudo, e é aqui que eu quero estar. Conclusão essa que não poderá ser certamente que uma dieta sem glúten não se reflete em melhorias da performance ou em parâmetros de saúde, e muito menos que é mais um mito urbano entre muitos.

E que estudo é esse? Uma equipa de investigadores Canadiana publicou em Dezembro passado um estudo sobre o efeito da eliminação do glúten na performance atlética [LINK]. Para isso recrutou um grupo de 13 indivíduos de ambos os sexos (sublinho os 13, que nem para uma equipa de futebol completa com suplentes chega), os quais submeteu a uma dieta com e sem glúten, em modelo crossover, durante 7 dias, avaliando o impacto a nível de sintomas gastrointestinais, desempenho, e marcadores inflamatórios. Estes indivíduos foram previamente selecionados de acordo com a ausência de doença celíaca ou alergia ao glúten, sensibilidade não-celíaca ao glúten (diagnosticada ou suspeita), e Síndrome do Intestino Irritável. Portanto, incluiu apenas aqueles a quem a dieta sem glúten de facto não fará grande diferença. A conclusão do estudo foi, como seria de esperar, que a retirada do glúten da alimentação não resulta em melhoria da performance neste grupo de indivíduos que à partida não tinham qualquer problema com a sua ingestão. E é apenas isto que podemos concluir.

Existem várias posições que podemos assumir ao analisar este trabalho. Uma é apenas ler o título ou o abstract:

"Não existe efeito a curto prazo de uma dieta gluten-free na performance de atletas não-Celíacos"

Se calhar alguns vão passar na diagonal pelo texto e apenas ler estas "gordas". Podemos ficar-nos pelo óbvio que comprova a nossa crença e vontade. Um belo de um sound bite. A dieta sem glúten não serve para nada... Está provado cientificamente! Hummm... Não não está, e já la vamos. Mas mesmo sem ler o artigo completo da forma como deve ser lido, podemos observar o cuidado em escrever "curto prazo", e estas duas palavrinhas fazem de facto toda a diferença. Foram 7 dias. Isto quando dificilmente em menos de um mês há redução da carga autoimune provocada pelo glúten em pessoas sensíveis, o que de qualquer forma não é a amostra deste estudo. Excluiu logo à partida aqueles que de alguma forma poderiam beneficiar da restrição, portanto 7 dias ou 1 mês talvez não fizesse grande diferença.

Mas podemos então assumir uma postura mais crítica e factual. Não quero de forma alguma dizer que o estudo não tem validade nem interesse científico, desde que se extraiam as conclusões que de facto podem ser retiradas - a dieta sem glúten durante uma semana não teve eficácia na melhoria da performance em atletas sem sinais de sensibilidade. E daqui não podemos sair, apesar de ser tão fácil e apetitoso manipular estes resultados para descredibilizar a retirada o glúten da alimentação, o que, como tenho vindo a dizer, não é uma necessidade de todos mas sim daqueles 6% da população geral que parecem reagir ao glúten sem evidência de Doença Celíaca ou alergia [LINK]. Portanto, todos os atletas que de alguma forma poderiam beneficiar foram excluídos à partida.

Um outro aspecto importante é o número de indivíduos da amostra. Ora, uma pessoa que tenha  alguma prática em fazer ou mesmo analisar estudos científicos, com conhecimentos simples de estatística, sabe que de uma amostra de 13 pessoas pouco podemos extrair para além de suspeitas que usamos para desenhar estudos em maior escala e mais robustos - o chamado estudo piloto. O estudo não tem potência suficiente para ser conclusivo, e em bom rigor nunca poderemos dizer que a retirada do glúten não tem efeito nos parâmetros quantitativos avaliados. Isto porque o tamanho da amostra poderá simplesmente não ter sido o suficiente para identificar um efeito pequeno, mas significativo e existente. Aquilo que em estatística se chama um erro tipo 2.

Se analisarmos com atenção os valores apresentados da variação dos parâmetros inflamatórios verificamos também que o desvio padrão é enorme. Por exemplo, o IL-1beta alterou no pré-exercício +9,71 +/- 9,90. O desvio padrão é maior que a média! Isto significa que em alguns indivíduos poderá de facto ter havido atenuação dos parâmetros inflamatórios com a dieta sem glúten, mas a pequena dimensão da amostra não permitiu diluir o efeito da variação inter-individual na resposta. Em estudos com tão poucos sujeitos é útil mostrar os dados individuais dos intervenientes, e não apenas estatísticas centrais. E são 13 pessoas! Podiam muito bem te-lo feito e certamente tornaria o estudo mais interessante e informativo.

Também fica por explicar como é que este estudo é duplamente mascarado quando foi dada aos atletas uma lista de alimentos a incluir, e necessariamente quais os que deveriam excluir por defeito. Acho que qualquer um com dois dedos de testa sabia se estava numa dieta com ou sem glúten. Digo eu... E mais, estudos deste género que não sejam em internato devem ser vistos com muita cautela e desconfiança. Não é fácil controlar o que uma pessoa come fora do centro, e esperar ingenuamente que nos conte a verdade depois, sob risco de ser excluída ou de ter falhado às expectativas.

Os autores do estudo referem como introdução que já antes tinham publicado sobre a opção de muitos atletas não-Celíacos em seguir uma dieta sem glúten. Reportam que 40% dos atletas não-Celíacos seguem uma dieta sem glúten durante 50% do tempo, e é verdade que cada vez mais desportistas optam pela restrição. Mas vamos ver a dieta da Francisca:

Pequeno-almoço: uma tigela de cereais fitness com leite magro
Meio da manhã: uma maçã e uma tosta
Almoço: bife de peru grelhado com arroz e salada
Lanche: iogurte sólido
Jantar: sopa com fruta

A Francisca segue uma dieta sem glúten durante 60% do tempo. Se ela tivesse alguma sintomática associada à sensibilidade ao glúten seria de esperar que melhorasse? Naqueles que beneficiam da restrição ao glúten, a retirada tem de ser total e prolongada por um período ideal de cerca de um mês. A reacção dá-se com pequenas quantidades e leva tempo para a carga autoimune baixar ao ponto de se tornar assintomática e inexistente. Não há forma de seguir uma dieta gluten-free assim-assim.

Para quem considerou esta publicação uma prova da misticidade da restrição do glúten, pergunto-me o que pensariam de um estudo para avaliar o efeito de um fármaco anti-diabético cuja amostra fossem indivíduos sem diabetes diagnosticada ou suspeita ao inicio. Estariam à espera doutro resultado que não a ineficácia de uma estratégia para aliviar os sintomas de uma doença inexistente? Quando se critica a pouca e má evidência que existe para uma mudança de paradigma, e muitas vezes com toda a propriedade, é bom que se usem os mesmos critérios selectivos e rigorosos para a "evidência" que vai ao encontro das nossas crenças e práticas correntes. Não interpretar e concluir de forma abusiva com um estudo que nada nos diz sobre a existência ou não de sensibilidade ao glúten não-celíaca, nem tão pouco do efeito da eliminação do glúten na performance das pessoas que realmente sofrem do problema - os atletas com sensibilidade ao glúten. Não os 90-95% dos atletas que provavelmente não terão problemas com o ele.

Devemos também salientar que os próprios autores reconhecem a existência da sensibilidade ao glúten não-celíaca, o que para muitos ainda é uma "ilusão". Passo a citar: "As dietas sem glúten são uma necessidade de relevância clínica em 5 a 10 % da população geral", isto bem superior à prevalência de Doença Celíaca e alergia ao glúten juntas. Já é um avanço enorme ao instituído, que ainda vê a sensibilidade ao glúten como o unicórnio das doenças autoimunes e perturbações gastrointestinais. Se a prevalência em Portugal não for muito diferente dos EUA, 10% são 1 milhão de pessoas. Estão a dizer que entre 500 000 e 1 milhão de Portugueses podem beneficiar da retirada do glúten? Vinte ou trinta milhões de Americanos? Estamos a falar de algo que em escala é próximo de uma diabetes por exemplo. Mas reafirmo, a restrição do glúten não é necessariamente para todos, mas são muitos os que dela beneficiam. Esses 500 000 ou 1 milhão que estão a ser ignorados nas suas queixas gastrointestinais e não só.

Mas na verdade, para quem trabalha na área clínica, sejam médicos, nutricionistas ou outros, existe naturalmente um viés desta prevalência que dá uma percepção magnificada da realidade. Deparam-se com muitos casos pois a amostra não é necessariamente representativa da população em geral. É natural que sejam aqueles que mais sofrem de sintomas sem diagnóstico que procurem ajuda, seja inchaço, dor abdominal, obstipação, diarreia ou outros [LINK]. Os 5-10% de repente parecem 50%, e aqui é também muito importante para o profissional saber fugir ao "Mount Stupid", um fenómeno sobre o qual já me debrucei antes [LINK]. De repente toda a gente parece ter sensibilidade ao glúten! Calma... Não é bem assim. Mas o que interessa é de facto a pessoa que têm à frente.

Haverá sempre em 2016 quem ainda acredite que a Terra não é redonda, mesmo quando o Homem já a conseguiu ver do espaço [LINK]. No imediato e óbvio, nada aponta para que não seja mesmo plana, mas com a resistência normal nestas mudanças de paradigma, rendemo-nos às evidências e ao progresso científico. Copérnico era um louco, depois passou a visionário, e agora as suas teorias dadas como adquiridas e ensinadas às crianças na escola. Os loucos passaram a ser aqueles que agora insistem no contrário. Como dizia um professor que tive, e um dos mais reconhecidos a nível Nacional em Epidemiologia Clínica, para mudar alguma coisa estabelecida e correntemente praticada é preciso evidência ao cubo. No que diz respeito ao glúten ainda não estamos lá, mas a  fazer a longa caminhada.

Com tudo isto até parece que estou a assumir a questão do glúten como um cavalo de batalha, mas estou longe de ser o paladino da guerra contra o trigo. Não me considero uma pessoa particularmente fundamentalista em relação ao assunto, mas não quero ver uma questão de saúde pública e bem-estar ridicularizada como tem sido. É um problema que deve ser encarado com a seriedade que merecem esses 5-10% de pessoas. A retirada do glúten não é necessariamente para todos, mas muitos são os não-Celíacos que dela beneficiam. E em relação a este estudo em particular, no que diz respeito à restrição do glúten no desporto, estamos exactamente na mesma. Não acrescentou nada para além da constatação do óbvio e senso comum, o que por vezes também é importante.

Em tudo o que vemos  
e em tudo o que encontramos
há uma maneira de provar 
aquilo em que acreditamos



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