Saúde
Caso de estudo: Low-carb prolongado e perfil de distribuição de gordura
Para primeiro artigo após este longo tempo de ausência decidi trazer-vos um "caso clínico", ou mais propriamente um caso de estudo. Como sabem, na Metabolic Edge eu e a equipa que comigo colabora acompanhamos pessoas com base num diagnóstico metabólico prévio e uma avaliação antropométrica completa. Muitas vezes surgem situações de um aparente "metabolismo estragado", e quando esta é a percepção do cliente, muitas vezes está certo. E em grande parte dos casos, este "dano" surge uma restrição demasiado severa em hidratos de carbono, aliado a exercício físico intenso e frequente. E o que fazer para corrigir? Como fazer o diagnóstico? É sobre isto que iremos falar um pouco...
O José (nome fictício obviamente) procurou ajuda pois não está satisfeito com tantos anos de esforço e dedicação, quer ao treino quer à alimentação. É um homem muito rigoroso e que segue uma dieta restrita há vários anos. É também de há muitos anos que treina, agora com uma frequência de 5 vezes por semana, essencialmente musculação, e cada vez mais sente dificuldade em ganhar massa muscular, aquele que é o seu principal objectivo. Além disso, aquela gordura abdominal e na base das costas ("love handles") teima em não desaparecer, mesmo com toda a restrição em hidratos de carbono que faz há muito tempo. Ora, o problema se calhar é mesmo esse...
Relativamente à dieta, este é um dia típico do José:
Pequeno-almoço (8:00)
3 ovos + 2 fatias de fiambre de aves + 2 fatias de bacon
1 chav café de oleaginosas
Meio da manha (10:30)
40 g de oleaginosas
Por vezes uma peça de fruta
Almoço (13:00)
Carne ou peixe sem limite de quantidade
Legumes temperados com azeite
Lanche (17:00)
Oleaginosas ou chocolate negro
Gelatina light ou uma barrita Atkins
Fiambre de aves ou salmão fumado
Treino (18:00)
Pós-treino (19:30)
30 g de whey protein
5 g de glutamina
3 g de BCAAs
Jantar (21:00)
Carne ou peixe sem limite de quantidade
Legumes temperados com azeite
Ceia (0:00)
40 g de caseína com água
A nível de suplementação, para além dos descritos também toma ómega-3 (4 g de EPA+DHA por dia), ZMA ao deitar, um multivitamínico barato muito comum em lojas de suplementação desportiva, e um volumizador pré-treino que vai alternando.
A avaliação física inicial indica-nos os seguintes valores:
Idade: 34
Altura: 1,76 m
Peso: 73,4 Kg
%MG bioimpedância: 18,9%
Perímetro abdominal: 88,7
Perímetro da cintura: 79,8
Pregas cutâneas:
Abdominal: 23
Supra-ilíaca: 13
Subscapular: 12
Crural: 18
Tricipital: 13
Bicipital: 6
Peitoral: 10
Axilar: 13
Lower-back: 17
Este perfil ilustra um homem com peso normal mas com gordura excessiva e de distribuição indicativa de um desequilíbrio metabólico/hormonal. Os valores das pregas, nomeadamente a abdominal, sugere uma exposição excessiva a cortisol aliada a baixos níveis de testosterona. Isto é reforçado pela espessura da prega crural e tricipital, indicativa de uma alguma predominância estrogénica. A acumulação de gordura na base das costas poderá também indicar um desequilíbrio hormonal a nível do cortisol, testosterona, estrogénicos, e uma elevada sensibilidade à progesterona. Tendo também em conta a má qualidade de sono e fadiga que o José vos relatou, este quadro tem uma probabilidade elevada de ser real.
As pregas são interessantes para levantar hipóteses, mas a verdade é que tudo deverá ser confirmado por análises, que foram feitas:
Colesterol total: 219 mg/dL
HDL-c: 48 mg/dL
TSH: 2,1
T4 livre: 1,4 ng/dL
T3 livre: 2,3 pg/mL
Cortisol basal: 19,9 mcg/dL
Cortisol urina de 24h: 85 mcg/24h
Testosterona total: 5,85 ng/mL (2,5-8,4)
Testosterona livre: 6,1 pg/mL (7,2-23)
17beta-estradiol: 41,5 (7,6-42,6)
SHBG: 55,9 nmol/L (10-57)
Dispensei apresentar-vos outros valores pouco relevantes para o que tratamos agora. Apesar dos valores das hormonas tiroideias estarem sub-óptimas tendo em conta o que já sabemos sobre o efeito da privação energética prolongada neste eixo [link], o problema central não parece estar aí. Tal como esperado, a exposição diária ao cortisol é elevada (cortisol basal apenas um pouco alto, mas muito alto na urina de 24h). Sabe-se que a privação de sono à noite está relacionada com altos níveis de cortisol ao final do dia, o que parece ser aqui verdade. Além disso a própria restrição em hidratos de carbono e treino frequente podem exacerbar essa situação [link]. Para mais, o rácio cortisol/testosterona livre é bem desfavorável, favorecendo aquela gordura abdominal resistente que tanto perturba o José.
Relativamente ao equilibrio testosterona/estrogénio, também aqui temos algo a dizer. Apesar nos níveis normais de testosterona total, a fracção livre, portanto com acção no organismo, está bastante baixa. A testosterona circula ligada a uma proteína, a SHBG. Nesta forma a hormona está retida e não tem acção sobre os tecidos alvo. Como podem verificar, os níveis de SHBG estão bastante altos, o que diminui a relação testosterona livre/testosterona total. Um dos factores que leva ao aumento da SHBG são os estrogénios, que no caso do José estão elevados. Sabe-se que o cortisol aumenta a actividade da aromatase, uma enzima que converte a testosterona em estrogénios, e que o tecido adiposo é um local de elevada actividade desta aromatase. Por seu lado, a insulina reduz a SHBG, mas lembrem-se que ele segue uma dieta baixa em hidratos de carbono há muito tempo e que são de esperar níveis de exposição à insulina relativamente baixos. Mais um factor a puxá-la para cima...
Já temos um diagnóstico traçado, e uma situação que terá de ser corrigida. Como? Ora, isso será um próximo artigo para não me alongar mais, e para vos deixar um pouco na expectativa ;). Não só serão apresentadas estratégias como também a evolução recente do caso, bem positiva por sinal. O nosso corpo dá-nos todos os sinais que precisamos, só temos de os entender e aprofundar com as ferramentas que a ciência nos disponibiliza. "Metabolismos estragados" existem, mas são poucos os que não podem ser corrigidos, leve o tempo que levar.
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