Comentário à notícia da RTP1: "Especialistas dizem que a dieta de Atkins pode aumentar risco de doenças cardiovasculares"
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Comentário à notícia da RTP1: "Especialistas dizem que a dieta de Atkins pode aumentar risco de doenças cardiovasculares"



Há alguns dias no programa Bom Dia Portugal da RTP1 foi dada uma notícia que citava um estudo Norte-Americano sobre os efeitos nefastos da dieta de Atkins, cetogénica, no sistema cardiovascular e suas possíveis implicações cancerígenas. Incompreensivelmente, não é feita qualquer alusão à fonte e ficamos sem saber a que estudo particular se referem. Como tal, não poderei comentar o estudo embora não tenham sido poucas as tentativas para descredibilizar esta dieta que foge ao convencional. No entanto, gostaria de escrever algumas palavras sobre o que a nutricionista convidada disse acerca de dieta de Atkins, um comentário bem representativo do paradigma atrofiado que domina actualmente.




Para uma notícia cuja manchete é "Especialistas dizem que a dieta de Atkins pode aumentar risco de doenças cardiovasculares", é curioso que a nutricionista nem toque no assunto. Basicamente o que fez foi uma explicação simplista do que é a dieta de Atkins.

A primeira incorrecção que comete é assumir que as células cerebrais apenas funcionam com glicose, uma assumpção falsa que já tive oportunidade de desmistificar. Os corpos cetónicos são um substrato energético perfeitamente viável. Injustificadamente, estes compostos suportam o pesado fardo da cetoacidose diabética, sendo muitas vezes confundidos como perniciosos. É importante sublinhar que a cetose é um processo fisiológico normal mas que em condições patológicas, como na diabetes, se descontrola e assume proporções deletérias. Numa situação normal, sustenta o organismo em períodos de jejum e quando os níveis de insulina sofrem uma redução acentuada (dois fenómenos a que o organismo responde de forma semelhante).

A restrição severa dos hidratos de carbono, através de um decréscimo acentuado dos níveis de insulina, favorece a produção destes corpos cetónicos a partir da oxidação parcial de gorduras. Sendo eles um substrato das células cerebrais, podemos dizer que estas usam a gordura de forma indirecta e não estão dependentes em exclusivo da produção de glicose a partir dos aminoácidos constituintes do músculo. Reforço que os neurónios não oxidam gorduras, até porque a barreira hematoencefálica lhes é impermeável. Os corpos cetónicos são produzidos no fígado e transportados no sangue até às células cerebrais.

A Dra. Catarina Durão refere também que as dietas muito ricas em gordura e pobres em hidratos de carbono provocam a perda de massa muscular. Tendo já provado falsa a ideia de que o requerimento de glicose iria promover a canibalização de músculo (em condições de hipoinsulinémia), de onde virá esta observação? Será que alguma vez se verificou que uma dieta muito restritiva em hidratos de carbono provoca a perda de massa muscular?

Já e podemos situar esta ideia numa publicação de Adam Kennedy em 2007 no American Journal of Physiology. Kennedy estudou o efeito de quatro regimes alimentares em ratos:

Ração normal (chow): 16.7% gordura, 26.8% proteína e 56.4% hidratos de carbono (dos quais 6.5% sacarose)

High-fat (HF): 45% gordura, 24% proteína, 35% hidratos de carbono (17% sacarose)

Cetogénica (KD): 95% gordura, 5% proteína e 0% hidratos de carbono

Restrição calórica (CR): semelhante à ração normal mas restringida a 66% do valor energético.

Quando os investigadores quantificaram a massa magra dos animais, os resultados foram os seguintes:


Antes de mais, deixem-me fazer um desabafo. Quando se aumenta o teor de gordura de uma dieta em ratos, aumentando em paralelo o consumo de sacarose, está-se a querer provar o quê exactamente? É um erro metodológico crasso mas perpetuado em vários estudos do género. Torna-se impossível saber se um determinado efeito é provocado pela gordura ou pelo açúcar. A isto se deve muita da confusão e concepções erradas acerca do efeito metabólico da gordura alimentar. Na verdade, os cientistas têm muita dificuldade em alimentar ratos com dietas ricas em gordura se não aumentarem o açúcar. Os animais rejeitam-nas. Porque será... Se calhar este pequeno pormenor é uma das conclusões mais interessantes dos trabalhos em modelo roedor.

Como podemos ver no gráfico, os ratos submetidos a KD apresentaram uma redução de massa magra comparável aos animais sob restrição calórica. Houve perda de músculo mesmo sem uma limitação do consumo energético, ao contrário do que se verificou com a dieta normal e HF.

Para quem abomina as dietas que fogem um pouco ao convencional, mas que se têm mostrado bastante eficazes para a gestão de peso, estes resultados parecem ir ao encontro da sua posição. Ouro sobre azul! Os regimes que restringem severamente os hidratos de carbono não são recomendáveis porque grande parte do peso perdido é massa muscular. Claro que ignoram a outra parte. No máximo são igualmente maus em comparação com os regimes tradicionais.

Mas uma das promessas dos regimes low-carb é mesmo a manutenção da massa magra, o que entra em contradição com estes resultados. Será mesmo que entra?

Repare na proporção de macronutrientes da dieta cetogénica. As gorduras constituem 95% da energia e a proteína os restantes 5%. Um tal consumo de gordura não é advogado pela dieta de Atkins nem por outras dietas cetogénicas tornadas famosas em humanos. Apesar da limitação severa dos hidratos de carbono, o consumo de proteína rondará sempre os 20-30%, ao invés dos 5% utilizados neste estudo. Lembre-se que os regimes do tipo Atkins recomendam um elevado consumo de carne e derivados, alimentos de elevado teor proteico. Ora, que implicações isto terá?

Se tem algum background em bioquímica, já ouviu certamente que "a gordura queima à chama dos hidratos de carbono". Este principio tem décadas de existência e ainda não foi modernizado para a sua versão correcta à luz do conhecimento actual: "as gorduras queimam à chama do oxaloacetato".

O ciclo de Krebs é provavelmente uma das vias metabólicas melhor caracterizadas. Nela são gerados equivalentes redutores para produção de energia a partir dos ácidos gordos ou hidratos de carbono. É o ponto de convergência entre o metabolismo oxidativo destes dois substratos. Ambos entram no ciclo como acetil-CoA, uma pequena molécula que se combina com o oxaloacetato e gera citrato.


O problema é que os intermediários do ciclo de Krebs são produzidos a partir da glicose ou dos aminoácidos, nunca dos ácidos gordos. Já estão a ver onde isto vai dar. Com um fornecimento insuficiente de um ou de ambos os nutrientes, o corpo só tem uma forma de gerar os esqueletos carbonados necessários à via metabólica. Após a depleção do glicogénio, será preciso canibalizar o tecido muscular de forma a libertar aminoácidos. Estes aminoácidos serão canalizados para a produção dos intermediários do ciclo e assim permitir a conversão de gordura em energia útil.

O requerimento de aminoácidos ou de glicose para alimentar o ciclo de Krebs não é muito grande. Trata-se de um ciclo e os compostos vão sendo regenerados no processo. No entanto, estes metabolitos intermédios participam noutras vias metabólicas e precisam de ser sintetizados frequentemente. Logo, não é boa ideia adoptar uma dieta constituida por 95% de gordura, um valor que nem sequer está de acordo com as dietas aplicáveis em humanos. Extremistas mas não tanto.

Para finalizar, queria apenas destacar o momento em que a Dra. Catarina Durão diz que estas dietas são uma inversão das recomendações actuais. Pois são... das recomendações que nos tornaram obesos e doentes. Começa a ser de loucos continuar com a mesma abordagem à espera de resultados diferentes.

Eu não sou adepto das dietas cetogénicas e acho que não é necessária tal restrição dos hidratos de carbono. Dentro destes incluo apenas os vegetais e alguma fruta claro. Tudo o resto sim... é dispensável. De qualquer forma, a minha posição não me dá a arrogância para desprezar um regime com provas dadas. Na verdade, este tipo de dietas não surgiu pelo mão de Robert Atkins em 1972. O primeiro documento histórico remonta a cerca de 100 anos atrás: a "Letter on Corpulence" de William Banting. A restrição dos hidratos de carbono como estratégia para perda de peso era aceite pacificamente até há uns 40 anos, altura em que um homem mudou, contra fortes evidências científicas, a nossa forma de pensar: Ancel Keys. Plantou-se a semente de uma árvore que não tem parado de crescer.

Aproveito também para deixar o comentário à mesma notícia de um colega blogger. É uma leitura que vale bem a pena.



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