Saúde
Glúten: sensibilidade e permeabilidade intestinal — Parte 2
No primeiro post dessa série sobre glúten, definimos alguns conceitos importantes para a compreensão do tema em questão. Agora, vamos discutir alguns estudos para entender o efeito que o glúten exerce sobre pessoas com doença celíaca e pessoas com sensibilidade ao glúten.
Para se (re)familiarizar com esses conceitos importantes, é recomendável que o post anterior sobre glúten seja (re)lido.
Alimentos com glúten x Sintomas
Precisamos começar com um fato: o consumo de alimentos com glúten é capaz de gerar sintomas tanto em pessoas com doença celíaca como em indivíduos que possuem o que chamamos de sensibilidade ao glúten. Não estamos falando do glúten isolado, mas de alimentos que contêm glúten, como trigo, centeio e cevada.
No entanto, apesar de se conhecer os motivos pelos quais se dá o surgimento de sintomas nos pacientes celíacos (principalmente por causa do aumento na inflamação no intestino) — até mesmo porque a doença celíaca já é uma patologia estudada há muitas décadas —, ainda não se sabe exatamente como surgem os sintomas em indivíduos com sensibilidade ao glúten.
A partir dessas dúvidas, algumas hipóteses foram e ainda são levantadas. Uma delas, e talvez a principal, é a de que o consumo de glúten a partir de alimentos fonte dessa proteína levaria ao aumento na inflamação e na permeabilidade intestinal — tanto na doença celíaca como na sensibilidade ao glúten.
Então vamos ver o que os estudos dizem sobre o efeito do glúten na inflamação e na permeabilidade intestinal, tanto na doença celíaca como na sensibilidade ao glúten.
Glúten, células e permeabilidade intestinal
Antes de tudo, mais um conceito. Zonulina é uma proteína que se encontra entre células intestinais, numa área chamada zona de oclusão (tight junction, em inglês). A função da zonulina é controlar quão juntas, ou “grudadas”, as células intestinais estão uma nas outras. Quanto maior for a ativação da zonulina, maior é o espaço que há entre as células (menos juntas estão as células), ou seja, maior é a permeabilidade intestinal. Além disso, quando a zonulina que se encontra entre as células intestinais é estimulada, ela é liberada e acaba por cair no sangue — levando ao aumento na concentração sanguínea de zonulina.
Ok, então vamos à história. Ela começa com o seguinte estudo:
Gliadin, zonulin and gut permeability: Effects on celiac and non-celiac intestinal mucosa and intestinal cell lines [1]
Esse é um estudo com células. Parte da pesquisa foi realizada com células extraídas de pacientes com doença celíaca e de pacientes sem doença celíaca; a esse tipo de experimento com células isoladas de organismos vivos, como é o caso, nós damos o nome de ex vivo. A outra parte do estudo foi realizada com culturas de células intestinais, ou seja, células cultivadas em laboratório; esse tipo de experimento nós chamamos de in vitro.
O que os pesquisadores fizeram foi expor todos esses tipos de células à proteína gliadina, que nada mais é do que a fração reativa (responsável por desencadear os sintomas em pacientes celíacos) do glúten.
Foi observado o seguinte:
- As culturas de células liberaram zonulina e tiveram aumento na permeabilidade entre células adjacentes.
- As células extraídas de pacientes com doença celíaca apresentaram aumento muito grande na liberação de zonulina e na permeabilidade intestinal.
- As células extraídas de pacientes sem doença celíaca também apresentaram aumento na liberação de zonulina e na permeabilidade intestinal.
- As células de pacientes celíacos, mesmo antes da exposição à gliadina (glúten), já apresentavam permeabilidade intestinal consideravelmente superior quando comparadas às células dos indivíduos sem a doença.
[Obs.: Esse último ponto é muito importante. Essa informação mostra que, “naturalmente”, pacientes com doença celíaca já apresentam aumento da permeabilidade intestinal, enquanto que isso não ocorre em indivíduos sem a doença. Não dá pra ter certeza, mas é também possível que pacientes com sensibilidade ao glúten, mesmo que tenham maior permeabilidade intestinal quando comparados a indivíduos "normais", também tenham menor permeabilidade intestinal do que pacientes celíacos. Assim, esse já seria um grande ponto de divergência entre as duas condições, possivelmente representando também uma grande diferença na resposta ao glúten]
A partir desse estudo, muita gente já conclui que o consumo de glúten causa aumento na permeabilidade intestinal tanto em pacientes celíacos como em pessoas sem doença celíaca. “Morte ao glúten!"...
Conclusão muito precipitada essa. Esse é um estudo com células. Cé-lu-las isoladas. Não reflete praticamente em nada um organismo vivo, principalmente porque existem milhares de fatores que poderiam influenciar a resposta das células intestinais ao glúten em um ser vivo. Parte do estudo foi in vitro e a outra parte ex vivo. Esses dois tipo de estudo servem apenas para gerar hipóteses — e, em alguns casos, para explicar mecanismos de efeitos já existentes.
A questão é que, antes desse trabalho com células, nenhum estudo em humanos havia sido conduzido, então não se pode dizer que o efeito observado nas células isoladas é o mesmo que seria em humanos. Mas agora temos uma hipótese gerada a partir desse estudo: o consumo de glúten poderia causar aumento na permeabilidade intestinal em humanos, mesmo em indivíduos sem doença celíaca. Será?
Glúten, humanos e permeabilidade intestinal
Divergence of gut permeability and mucosal immune gene expression in two gluten-associated conditions: celiac disease and gluten sensitivity [2]
Nesse estudo, os pesquisadores recrutaram indivíduos com doença celíaca e sensibilidade ao glúten, além de pessoas saudáveis que não apresentavam qualquer tipo de reação com o consumo de glúten (grupo controle).
Não houve intervenção nessa pesquisa, o que significa dizer que nenhum dos participantes recebeu glúten, ou alimentos com glúten, para que os experimentos fossem realizados. Os pesquisadores apenas estudaram o grau de permeabilidade intestinal e o nível de inflamação no intestino de cada um dos três grupos (doença celíaca, sensibilidade ao glúten e controle).
Os resultados:
- Maior permeabilidade intestinal em pacientes com doença celíaca do que em indivíduos controle.
- Menor permeabilidade intestinal em pessoas com sensibilidade ao glúten do que em indivíduos controle.
- Dois marcadores inflamatórios (IL-6 e IL-21) foram encontrados aumentados em celíacos comparados aos indivíduos controle.
- Um outro marcador inflamatório (TLR2) estava aumentado nos pacientes com sensibilidade ao glúten comparados ao grupo controle.
[Obs.: os marcadores de inflamação que estavam aumentados nos pacientes celíacos são muito mais significativos do que o marcador aumentado nos indivíduos com sensibilidade ao glúten]
Resumindo:
- Doença celíaca = aumento na permeabilidade intestinal, além de provável aumento na inflamação.
- Sensibilidade ao glúten = não há aumento na permeabilidade intestinal, mas possível aumento na inflamação.
Entretanto, cabe uma ressalva importante. Não é referido no artigo se os pacientes com sensibilidade ao glúten estavam ou não consumindo glúten nos dias próximos às realizações dos experimentos. Dessa forma, não é possível afirmar com certeza se a permeabilidade intestinal não aumentada em pacientes com sensibilidade ao glúten se dá: 1) porque o glúten de fato não aumenta a permeabilidade intestinal nesses indivíduos, caso eles estivessem comendo glúten nos dias próximos à realização dos experimentos; ou 2) o fato deles estarem numa dieta isenta de glúten faz com que o possível efeito que o glúten tenha no aumento da permeabilidade intestinal nesses indivíduos não possa ser percebido.
Mas o próximo estuda elucida essa dúvida, então vamos a ele...
Gluten causes gastrointestinal symptoms in subjects without celiac disease: a double-blind randomized placebo-controlled trial [3]
Os pesquisadores escolheram, como participantes do estudo, pacientes com síndrome do intestino irritável que tinham algum grau de sensibilidade ao glúten, mas que não possuíam doença celíaca. Esses pacientes estavam todos numa dieta sem glúten anteriormente ao início da pesquisa.
O objetivo do estudo foi basicamente avaliar o efeito do consumo de glúten nos sintomas, permeabilidade intestinal e inflamação nesses pacientes. Em outras palavras, avaliar o efeito do glúten em indivíduos com o diagnóstico de sensibilidade ao glúten.
Para isso, os pacientes foram divididos em dois grupos: glúten e controle. Durante 6 semanas, o grupo glúten recebia pão e muffin sem glúten adicionado de glúten isolado, enquanto o grupo controle recebia apenas pão e muffin sem glúten (sem adição do glúten isolado). Além disso, o restante da dieta de todos os indivíduos era isenta de glúten.
Os resultados:
- Grupo glúten = 68% (13 do total de 19) dos pacientes disseram que seus sintomas não foram devidamente controlados.
- Grupo controle = 40% (6 do total de 15) dos indivíduos referiram não ter os sintomas devidamente controlados.
- Não houve diferença nos marcadores de inflamação ou permeabilidade intestinal.
Houve diferença no percentual de indivíduos que referiram não controlar muito bem os sintomas quando comparamos o grupo glúten com o grupo controle (68% x 40%). Ou seja, assim como era de se esperar, mais pessoas (com sensibilidade ao glúten) que consumiram glúten relataram piores sintomas.
Mas será que o percentual de pessoas que não conseguiram devidamente controlar os sintomas, no grupo que consumiu glúten, não deveria ser maior? Eu acredito que sim, justamente porque todos esses pacientes foram considerados como sensíveis ao glúten antes do início do estudo. Ou seja, se eles são sensíveis, por que não houve um percentual mais próximo de 80, 90 ou até mesmo 100% desses pacientes relatando dificuldade no controle dos sintomas?
Além disso, vale ressaltar que a diferença na dificuldade de controle dos sintomas não foi muito grande entre os grupos: 68% x 40%. E mais: o percentual de indivíduos que não consumiram glúten e que referiram sintomas foi muito elevado – sendo que, na realidade, se esses pacientes realmente apresentam sensibilidade ao glúten propriamente dito, esse valor percentual deveria ser algo próximo a zero.
Então o que pode estar acontecendo?
Na minha opinião, o que esses estudos (principalmente o último) sugerem é que os pacientes com sensibilidade ao glúten na verdade apresentam sensibilidade a alguma substância ou componente presente em alimentos que contêm glúten.
No dia a dia das pessoas com sensibilidade ao glúten, elas consomem alimentos que são fonte de glúten — principalmente o trigo. Assim, quando alguém relata apresentar sintomas após o consumo de pão, por exemplo, e melhora dos mesmos sintomas quando deixa de comer esse alimento, é precipitado dizer que foi o glúten o responsável pelo desencadeamento dos sintomas. A pessoa não comeu glúten, ela comeu um alimento que contêm glúten.
Há diversos outros compostos no trigo (e em outros cereais que contêm glúten), como oligossacarídeos e aglutininas, que também podem causar reações e sintomas adversos em pessoas suscetíveis.
Considerações finais
As evidências mostrando que o glúten por si só é o culpado pelo desencadeamento de sintomas ou pelo aumento na permeabilidade intestinal em pacientes com sensibilidade ao glúten são muito fracas. Entretanto, ainda não é possível descartar que o consumo de alimentos com glúten causem sintomas nesses pacientes.
Na verdade, relatos clínicos e anedóticos sugerem que pacientes com a sensibilidade ao glúten realmente apresentam reações adversas com o consumo de alimentos que contêm glúten, melhorando os sintomas quando esses alimentos são evitados.
O estudo do próximo post, o mais recente de todos esses, vai nos ajudar a esclarecer um pouco mais esse assunto.
Referências
1. Drago S, et al. Gliadin, zonulin and gut permeability: Effects on celiac and non-celiac intestinal mucosa and intestinal cell lines. Scand J Gastroenterol. 2006;41(4):408-19.
2. Sapone A, et al. Divergence of gut permeability and mucosal immune gene expression in two gluten-associated conditions: celiac disease and gluten sensitivity. BMC Med. 2011;9:23.
3. Biesiekierski JR, et al. Gluten causes gastrointestinal symptoms in subjects without celiac disease: a double-blind randomized placebo-controlled trial. Am J Gastroenterol. 2011;106(3):508-14.
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