Saúde
Glúten: sensibilidade e permeabilidade intestinal — Parte 1
Um estudo recentemente publicado sobre glúten tem repercutido bastante na mídia e nas redes sociais. Resumidamente, a pesquisa avaliou o efeito do consumo e da retirada do glúten na dieta de indivíduos com sensibilidade ao glúten, mas que não apresentavam doença celíaca.
Mas o que está sendo devidamente exposto e interpretado sobre esse estudo? O que sabemos sobre a sensibilidade ao glúten?
O objetivo dessa série de posts relacionada ao glúten é falar principalmente sobre esse estudo recente. Mas, antes de entrarmos em detalhes, vamos primeiro entender alguns conceitos importantes.
Glúten
O glúten é uma proteína. Mais especificamente, o glúten é uma prolamina, proteína rica nos aminoácidos prolina e glutamina. Ele é muito valorizado na culinária, por ser capaz de conferir elasticidade, consistência e facilitar o crescimento de pães e massas. Vegetarianos também prezam pelo glúten, uma vez que é uma fonte de proteína relativamente barata e de fácil acesso para ele — apesar de não ser uma fonte de proteína "completa", ou seja, o glúten, como proteína, não é tão bem aproveitado pelo corpo como as proteínas das carnes, dos ovos ou dos laticínios. (O sabor também é bem "diferente"; quem já provou sabe).
O glúten pode ser encontrado em três cereais: trigo, centeio e cevada. Está contido também em cereais híbridos de algum desses três, como o triticale, ou em produtos derivados desses cereais, como o malte.
Atualmente, é amplamente aceito que a proteína semelhante ao glúten encontrada na aveia é diferente do glúten encontrado no trigo, no centeio e na cevada. Isso acontece porque a aveia pertence a tribo, gênero e espécie diferentes dos três cereais que contêm glúten em sua composição. Apesar disso, e de alguns estudos já terem demonstrado que o consumo de aveia pode ser seguro em pacientes com doença celíaca, algumas pesquisas já verificaram que certos cultivares de aveia, mas não todos, podem causar reações adversas em pacientes celíacos [1,2,3]. Além disso, já foi verificado que a aveia e produtos derivados (farinha e farelo de aveia, por exemplo), inclusive no Brasil, muitas vezes estão contaminados com traços de trigo, centeio ou cevada, aumentando seu risco de causar reações indesejáveis em indivíduos celíacos [4,5,6]. Por esses motivos, talvez não seja uma boa ideia os pacientes celíacos arriscarem o consumo de aveia, até porque mesmo não havendo reações adversas com algum produto contendo aveia em determinado momento, ninguém garante que o mesmo produto, da mesma marca, não estará contaminado numa próxima vez (por contaminação, por exemplo).
E por que o glúten é problemático? Porque ele não é uma proteína facilmente digerida, exatamente por ser rica em sequências dos aminoácidos prolina e glutamina. Nossas enzimas digestivas têm dificuldade para digerir esse tipo de sequência de aminoácidos. A digestão desfavorecida de glúten no trato gastrointestinal resulta na formação de peptídeos (pequenos fragmentos de proteína) não digeridos — sendo que o normal, na maioria das vezes, é que as proteínas sejam completamente digeridas em aminoácidos, e não em peptídeos. São esses peptídeos que provocam a reação ao glúten em pessoas com doença celíaca.
Doença celíaca
A doença celíaca é uma patologia desencadeada pelo consumo de glúten em pessoas geneticamente suscetíveis.
O glúten, ao chegar ao intestino dos portadores de doença celíaca, deflagra uma resposta imunológica que aumenta a inflamação e danos às vilosidades desse órgão, normalmente levando a quadros de diarreia, dor e distensão abdominal e perda de peso pela má absorção de nutrientes. Os sinais e sintomas da doença celíaca normalmente são intensos e severos, e a única forma de controlar a doença é através da restrição do consumo de glúten.
O diagnóstico de doença celíaca é definido através de uma série de testes específicos para essa patologia, como pela verificação da presença, no sangue, de anticorpos anti-transglutaminase tecidual e pela realização de uma biópsia intestinal.
Uma atual corrente de pensamento defende que a doença celíaca seria uma doença auto-imune, sendo desencadeada, entre outros fatores, pelo aumento na permeabilidade intestinal — a qual, por sua vez, seria decorrente do consumo de glúten em pessoas suscetíveis [7,8].
Permeabilidade intestinal
A permeabilidade intestinal, como o nome sugere, nos diz o quanto nosso intestino está permeável, ou seja, o quanto ele “permite” ou não a passagem de determinadas substâncias.
Em condições normais, o intestino absorve, através de receptores ou canais em suas células, todos aqueles compostos e substâncias que o corpo julga serem necessários ou essenciais. Ao mesmo tempo, tudo que o organismo não precisa é “passa direto” pelo intestino até ser excretado nas fezes. Tudo isso acontece porque as células intestinais — que se encontram “grudadas” umas nas outras — não permitem que nenhuma partícula ou substância estranha passe entre elas.
Entretanto, algumas condições específicas, como o estresse ou a ingestão de toxinas, assim como o desbalanço entre bactérias boas e bactérias ruins no intestino (mais sobre esse assunto em posts futuros), podem fazer com que a permeabilidade intestinal aumente. Nesses casos, o aumento na permeabilidade intestinal, por sua vez, pode acarretar na passagem de substâncias indesejadas do intestino para a corrente sanguínea. A presença de compostos estranhos dentro do nosso corpo leva, então, à ativação “indevida” do sistema imunológico, podendo causar inflamação e danos a diversos órgãos e tecidos.
Existem ainda diversos outros problemas relacionados ao aumento na permeabilidade intestinal, mas por enquanto ficaremos apenas com doença celíaca e sensibilidade ao glúten.
Sensibilidade ao glúten
A sensibilidade ao glúten, diferentemente da doença celíaca, é uma condição ainda pouco conhecida pela ciência, e por isso não se sabe muito sobre sua etiologia ou patogênese. Assim, não há um consenso sobre a definição exata do que de fato seria a caracterização da sensibilidade ao glúten.
De forma semelhante à doença celíaca, os sinais e sintomas também parecem ser desencadeados pelo consumo de glúten (a terminologia "parece" foi utilizada aqui exatamente porque o novo estudo questiona essa hipótese — mais sobre isso nos dois próximos posts!). Entretanto, os sinais e sintomas na sensibilidade ao glúten são menos específicos e variam muito de indivíduo para indivíduo, incluindo dores abdominais, diarreia, fadiga, constipação, dormência nas extremidades, dores de cabeça, vermelhidão na pele, dores musculares etc.
Apesar de alguns sintomas semelhantes e de também ser desencadeada pelo consumo de alimentos que contêm glúten, ainda não existe qualquer evidência mostrando que indivíduos com sensibilidade ao glúten apresentam os danos às vilosidades intestinais que ocorrem na doença celíaca. E essa talvez seja a grande diferença entre a sensibilidade ao glúten e a doença celíaca.
Para o diagnóstico de sensibilidade ao glúten, primeiro são realizados testes para a exclusão da possibilidade do paciente ter doença celíaca ou, ainda, alergia ao trigo. Depois, realizam-se testes com a introdução e remoção de glúten na dieta. Verificando que o paciente melhora os sintomas ao retirar o glúten da dieta e piora com seu consumo, desde que a doença celíaca e a alergia ao trigo tenham sido excluídas como hipóteses diagnósticas, pode-se dizer que o sujeito apresenta algum tipo de sensibilidade ao glúten — ou, de forma conceitualmente mais correta, sensibilidade a (pelo menos alguns) alimentos que contêm glúten.
Dois artigos científicos para quem quiser saber um pouco mais sobre a sensibilidade ao glúten:
- Non-celiac gluten sensitivity[9]
- Non-Celiac Gluten sensitivity: the new frontier of gluten related disorders [10]
É possível que o autodiagnóstico de sensibilidade ao glúten tenha aumentado consideravelmente nos últimos anos, principalmente devido ao crescente número de dietas que recomendam a exclusão do glúten. Muita gente sem sensibilidade certamente se incluiu nessa categoria por acreditar que o glúten por si só faz mal — mesmo em pessoas sem doença celíaca. Veremos nos próximos posts se isso realmente é verdade ou não.
Nos próximos capítulos...
O assunto é extenso, e por isso será dividido em 3 partes. No próximo post, comentaremos os estudos mais importantes que avaliaram o efeito do glúten e sua relação com doença celíaca, sensibilidade ao glúten e permeabilidade intestinal.
Após essa parte, poderemos entrar em detalhes no estudo mais recente e “polêmico”.
Referências
1. Arentz-Hansen H, et al. The molecular basis for oat intolerance in patients with celiac disease. PLoS Med. 2004;1(1):e1.
2. Real A, et al. Molecular and immunological characterization of gluten proteins isolated from oat cultivars that differ in toxicity for celiac disease. PLoS One. 2012;7(12):e48365.
3. Silano M, et al. Diversity of oat varieties in eliciting the early inflammatory events in celiac disease. Eur J Nutr. 2013 Nov 19. [Epub ahead of print]
4. Thompson T. Gluten contamination of commercial oat products in the United States. N Engl J Med. 2004 Nov 4;351(19):2021-2.
5. Koerner TB, et al. Gluten contamination in the Canadian commercial oat supply. Food Addit Contam Part A Chem Anal Control Expo Risk Assess. 2011;28(6):705-10.
6. Vieira EL. Determinantes de glúten em cultivares brasileiros de aveia e produtos derivados [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. 2001.
7. Visser J, et al. Tight junctions, intestinal permeability, and autoimmunity: celiac disease and type 1 diabetes paradigms. Ann N Y Acad Sci. 2009;1165:195-205.
8. Fasano A. Leaky gut and autoimmune diseases. Clin Rev Allergy Immunol. 2012;42(1):71-8.
9. Lundin KE, Alaedini A. Non-celiac gluten sensitivity. Gastrointest Endosc Clin N Am. 2012;22(4):723-34.
10. Catassi C, et al. Non-Celiac Gluten sensitivity: the new frontier of gluten related disorders. Nutrients. 2013;5(10):3839-53.
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