Saúde
O que ninguém tem falado sobre o último estudo que avaliou a relação entre gorduras e doenças cardíacas
Sempre ouvimos por aí que as gorduras saturadas, encontradas principalmente em alimentos de origem animal — queijo, manteiga, carnes, bacon (hmm) —, fazem mal para a saúde, principalmente para a saúde cardiovascular. Ao contrário, sempre dizem que as gorduras monoinsaturadas (encontradas em animais e vegetais) e poli-insaturadas (encontrada principalmente em vegetais) são as “gorduras boas”.
Existem estudos que relacionam maior consumo de gordura saturada com maior risco de eventos cardiovasculares? Sim. Mas todos esses estudos são observacionais, o que significa dizer que de fato pode haver uma associação entre as duas variáveis (consumo de gordura saturadax eventos cardiovasculares), mas uma relação de causa e efeito não pode ser inferida. Nunca, jamais, infira relação de causa e efeito de um estudo observacional.
São vários os sinônimos utilizados para as inferências que podem ser feitas em estudos observacionais: relação, associação ou correlação. Uma associação/relação/correlação pode ser positiva ou negativa. É positiva quando o aumento de uma variável “X” coincide com o aumento de uma variável “Y”: maior consumo de gordura e maior incidência de doenças cardiovasculares. É negativa quando o aumento de uma variável “X” coincide com a redução de uma variável “Y”. É claro que a associação/relação/correlação entre variáveis pode eventualmente representar causa e efeito, mas isso nunca pode ser concluído apenas por estudos observacionais.
Relações de causa e efeito podem apenas ser constatadas em estudos controlados de intervenção, mais conhecidos como ensaios clínicos. Nesse tipo de estudo os pesquisadores dividem os participantes em dois ou mais grupos, onde apenas uma variável da dieta é alterada (o tipo de gordura consumida, por exemplo), enquanto que as demais variáveis devem ser iguais entre os diferentes grupos estudados. Só assim é possível testar o efeito de determinada variável ou intervenção sobre quaisquer que sejam os parâmetros de interesse a serem avaliados pelos pesquisadores.
Como foi o estudo?
A pesquisa em questão é uma meta-análise. As meta-análises são estudos que “juntam” e analisam diversos outros estudos semelhantes entre si para obter uma conclusão mais “definitiva” de resultados potencialmente conflitantes quando os mesmos estudos são analisados individualmente. Para isso, as populações de cada estudo individual são somadas para se tornarem uma única população, com um número de pessoas analisadas na meta-análise consideravelmente superior ao número de pessoas analisadas em cada estudo individual.
Podemos dizer que o estudo, intitulado “Association of Dietary, Circulating, and Supplement Fatty Acids With Coronary Risk: A Systematic Review and Meta-analysis”, foi separado em três partes, de acordo com os tipos de estudos avaliados. Na primeira parte, 32 estudos observacionaissobre a ingestão de gordura da dieta foram avaliados, com um total de 530 525 pessoas analisadas. Na segunda parte, foram avaliados 17 estudos observacionais sobre os níveis corporais de diversos tipos de gordura, com um total de 25 721 pessoas analisadas. Na terceira, 27 ensaios clínicos sobre a SUPLEMENTAÇÃO de alguns tipos de gordura, com um total de 103 052 pessoas analisadas. Atenção para os trechos em vermelho!
Resumindo os resultados do estudo:
Ingestão de gordura x Risco de doença cardíaca (estudos observacionais)
- Gorduras saturadas: nenhum tipo de associação
- Gorduras monoinsaturadas: nenhum tipo de associação
- Gorduras ômega-6 (poli-insaturadas): nenhum tipo de associação
- Gorduras ômega-3 (poli-insaturadas): nenhum tipo de associação
- Gorduras trans: associação positiva com o risco de doença cardíaca — ou seja, risco aumentado com o maior consumo desse tipo de gordura
Níveis corporais de gordura x Risco de doença cardíaca (estudos observacionais)
- Gorduras saturadas: nenhuma associação, exceto o ácido margárico (C17:0)* que teve correlação negativa com o risco de doença cardíaca — em outras palavras, risco reduzido com o maior consumo desse tipo de gordura
- Gorduras monoinsaturadas: nenhuma associação
- Gorduras ômega-6: nenhuma associação, exceto o ácido araquidônico (C20:4)* que teve correlação negativa com o risco de doença cardíaca — ou seja, risco reduzido com o maior consumo desse tipo de gordura
- Gorduras ômega-3: associação negativa com o risco de doença cardíaca — ou seja, risco reduzido com o maior consumo desse tipo de gordura
- Gorduras trans: nenhuma associação
Suplementação x Risco de doença cardíaca (ensaios clínicos)
- Gorduras ômega-3 de origem vegetal: não apresentaram redução no risco
- Gorduras ômega-3 de origem animal: não apresentaram redução no risco
- Gorduras ômega-6: não apresentaram redução no risco
O que todo mundo falou sobre o estudo?
Houve repercussão na mídia internacional e na mídia nacional, e também em blogs nacionais e internacionais de qualidade. Todas foram análises boas e interessantes.
Em todas essas e outras fontes, o principal comentário foi: a gordura saturada não faz mal como a mídia, “especialistas” e instituições governamentais sempre disseram. Que está comprovado que a gordura saturada não é vilã!
De fato, a gordura saturada não faz mal. Não faz mal mesmo. E não faltam evidências para mostrar que ela não faz e nunca fez mal a ninguém... Discutiremos com mais detalhes esses assunto em posts futuros. Agora o foco da discussão será um pouco diferente, mas claro que relacionado a isso.
O que ninguém falou sobre o estudo?
Uma das “fraquezas” dessa meta-análise foi que ela utilizou um critério de inclusão muito amplo, principalmente para os estudos observacionais que avaliaram a relação entre o consumo dos diferentes tipos de gordura e o risco de doença cardíaca. E isso fez com que os estudos individuais coletados para a análise conjunta não fossem tão iguais entre si, principalmente no que diz respeito ao tempo de acompanhamento dos participantes de cada estudo individual.
Ok, mas qual o problema disso?
O “problema” é que essa relativa heterogeneidade entre os estudos individuais selecionados para a análise pode refletir um resultado diferente daquele que seria obtido caso o critério de seleção da meta-análise fosse um pouco mais “rígido” e, com isso, agrupasse estudos individuais que fossem mais semelhantes entre si.
Se os estudos selecionados fossem mais homogêneos entre si, existe uma possibilidade — mesmo que não tão grande — de que fosse encontrada uma associação positiva entre o consumo de gordura saturada e o risco de doenças cardíacas, ou seja, a maior ingestão de gordura saturada poderia aumentar o risco de desenvolvimento dessas doenças.
Importante ressaltar que essa é uma POSSIBILIDADE.
E eu quis levantar essa hipótese para dizer o seguinte: as pessoas normalmente se “conformam” com aqueles resultados que elas querem ver a partir dos estudos publicados.
Digamos que essa hipótese/possibilidade que eu levantei tivesse sido o resultado encontrado no estudo, ou seja, que o maior consumo de gordura saturada está associado com maior risco de doenças cardíacas. Aqueles que defendem o consumo de gordura saturada — no sentido de não a considerarem como um nutriente que apresenta malefícios — certamente estariam contestando os dados dizendo que as conclusões foram obtidas apenas a partir de estudos observacionais, e que seriam necessárias evidências de ensaios clínicos para que fosse comprovada a relação de causa e efeito entre o consumo de gordura saturada e o risco de doenças cardíacas.
Ou essas pessoas estariam contestando a metodologia da meta-análise em questão, dizendo que os critérios de inclusão ou exclusão de estudos não foram muito bem estabelecidos para que os resultados fossem de fato fidedignos etc etc.
Nada mais justo.
Mas quando os resultados vão exatamente de acordo com suas próprias crenças, o nível de exigência com os estudos parece diminuir... Não se observa a mesma veemência de contestação.
Assim, nesse caso também é justo que as pessoas que são contra o consumo de gordura saturada, ou seja, que afirmam que a gordura saturada faz mal para a saúde, contestem os resultados desse estudo. Se pararmos para olhar, nos trechos que grifei em vermelho acima, é possível perceber que NENHUM ensaio clínico que compara o consumo de gorduras saturadas contra o consumo de gorduras poli-insaturadas, por exemplo, foi incluído na meta-análise (apenas ensaios clínicos de suplementaçãoforam incluídos). E isso aconteceu não porque esse tipo de estudo não existe, porque eles existem sim. E vamos discuti-los mais pra frente.
Portanto, alguma pessoa que é contra o consumo liberal de gorduras saturadas poderia dizer o seguinte:
“A metodologia dessa meta-análise é fraca, o que resultou em uma não associação entre o consumo de gordura saturada e o risco de doenças cardíacas. Mas, como nenhum ensaio clínico que compara o consumo de gordura saturada contra o consumo de outros tipos de gordura foi avaliado, não é possível concluir que a gordura saturada não tenha algum efeito deletério sobre a saúde cardíaca”.
Considerações finais
Eu acho que o consumo de gordura saturada apresenta algum risco para a saúde? De forma alguma... Esse não foi o primeiro e não será o último estudo a mostrar que a gordura saturada é completamente benigna, se não BENÉFICA, para a saúde — talvez especialmente para a saúde cardiovascular. Discutiremos inúmeras evidências sobre isso posteriormente.
Os resultados dessa meta-análise são suficientes para “concluir” que a gordura saturada não apresenta risco para doenças cardíacas? Provavelmente... Porque quando não encontramos qualquer tipo de associação entre nossa variável de interesse (consumo de gordura saturada) e o desfecho (doenças cardíacas) em estudos observacionais, a probabilidade de encontrarmos uma relação de causa e efeito em ensaios clínicos é ínfima. Assim, todo mundo que falou que a gordura saturada não faz mal à saúde está certo.
Mas fica a reflexão: procuramos por falhas nos mais diversos estudos quando seus resultados não corroboram nossas crenças, e é por isso que precisamos ser mais críticos também quando os resultados dos estudos vão de acordo com nossas próprias convicções...
Passe a manteiga, por favor.
* Essa é a nomenclatura "resumida" que é utilizada para denominarmos os ácidos graxos. Ácidos graxos são as gorduras mais simples que temos, os quais são fundamentalmente encontrados nos alimentos. Quimicamente, os ácidos graxos são ácidos carboxílicos. Nessa nomenclatura, o número subsequente ao "C" significa o número de carbonos na molécula de ácido graxo, enquanto o número que se encontra após o ":" indica o número de duplas-ligações que a molécula possui. Exemplo: C20:4 (ácido araquidônico) é um ácido graxo com 24 átomos de carbono e 4 duplas-ligações na molécula.
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