Saúde
O sono, os padrões alimentares, e a saúde metabólica
As últimas décadas têm sido marcadas por um aumento galopante na prevalência de diabetes e obesidade. Os hábitos alimentares e o sedentarismo são apontados como as causas mais prováveis, embora tenha de ser reconhecido que não são de todo as únicas. O aumento de prevalência de doenças metabólicas crónicas nas sociedades modernas tem sido acompanhado de uma redução nas horas de sono. Desde 1960, quase 2h foram perdidas em média. Quais poderão ser as consequências disso? Poderá ter implicação no risco de diabetes tipo 2 e outras disfunções metabólicas?
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Primeiro que tudo devemos entender que a diabetes é uma doença de etiologia complexa, também com factores genéticos envolvidos. No entanto, na maioria dos casos tardios ela deriva da progressão de uma disfunção metabólica latente: a resistência à insulina. A resistência à insulina é marcada por uma menor eficiência da hormona em canalizar a glicose para as células. Como tal, geram-se episódios de hiperglicémia que obrigam a um esforço acrescido do pâncreas para compensar os níveis elevados de glicose no sangue. Eventualmente este trabalho acrescido leva a falência do pâncreas e glucotoxicidade, com perda de função das células que produzem insulina. Na verdade, o processo é bem mais complexo do que isto, envolvendo uma interacção íntima com o fígado e stress celular, mas por simplicidade fiquemos por aqui.
Sabe-se que apenas uma noite com restrição de sono pode gerar intolerância à glicose, como indicador de resistência à insulina. Se a privação de um sono regenerador continuar, o efeito torna-se mais acentuado. Um estudo revelou que dormir 4h por noite, durante 6 noites, reduziu a tolerância à glicose, aumentou os níveis nocturnos de cortisol, induziu actividade simpatética e reduziu a secreção de leptina, uma hormona indutora de saciedade. Níveis elevados de grelina, uma hormona que induz apetite, são também característicos em pessoas que dormem pouco.
Aqui fica uma representação esquemática da associação entre a privação do sono, obesidade, resistência à insulina e Síndrome Metabólica:
As boas notícias são que a intolerância à glicose parece reversível com a recuperação do sono ao fim-de-semana. Um estudo apresentado ontem no meeting da Endocrine Society mostra que dormir algumas horas extra ao fim-de-semana pode melhorar a resistência à insulina causada pela privação durante a semana de trabalho. No entanto, convém lembrar que este efeito é agudo. Durante a semana a tolerância á glicose é baixa expondo a níveis de glicémia mais elevados. Apesar do restauro ao fim-de-semana com mais umas horas de sono seja melhor do que nada, não é de todo óptimo.
O aumento da resistência à insulina com a privação parcial do sono pode estar relacionado com o aumento de citocinas pró-inflamatórias, nomeadamente TNF-alfa e IL-6. A restrição em 2h/dia durante uma semana leva ao aumento significativo do TNF-alfa e IL-6. Estes factores interferem com os mecanismos de sinalização da insulina, tornando-os menos eficientes na sua acção. Se a exposição a níveis elevados destas citocinas for crónica, a resistência à insulina pode progredir para diabetes.
Um outro aspecto de extrema importância é o aumento do cortisol nocturno e disrupção do padrão circadiano normal. Lembremos que o cortisol obedece a um biorritmo marcado por um pico matinal que decresce ao longo do dia. A perda deste padrão está intimamente relacionado com a obesidade e disfunções metabólicas. Já aqui falámos sobre a importância de preservar um perfil diário normal e de como o avaliar de forma rigorosa. O restauro do biorritimo pode em alguns casos ser crítico para normalizar o metabolismo e reverter factores de risco para doenças cardiometabólicas e obesidade.
Restaurar a função circadiana normal das glândulas adrenais, produtoras de cortisol, não é simples mas longe de impossível. A suplementação em alturas específicas com alguns nutrientes e compostos bioactivos é em muitos casos necessária (complexo B, magnésio, vitamina C, glutamina, ashwagandha, picnogenol, entre outros, não necessariamente em simultâneo), mas as modificações no estilo de vida são elas sim imprescindíveis. Não é possível estabelecer um protocolo terapêutico geral e cada caso deve ser encarado na sua individualidade. No entanto, podemos apontar algumas estratégias globais com um impacto positivo na função adrenal:
- Acordar e deitar a horas fixas
- Exposição matinal à luz bem cedo (já entendem porque durmo com os estores entre-abertos :P)
- Dormir 7-8h por noite
- Comer em horários regulares (4-6 refeições por dia)
- Pequeno-almoço rico em proteína
- Evitar grandes refeições à noite
- Exercício físico
O nosso corpo funciona com um "relógio interno", não só do sistema nervoso central como também das próprias células periféricas. Entender esta "cronobiologia" é crítico para estabelecer um programa eficaz e holístico de regeneração de um metabolismo comprometido. Os mecanismos de controlo circadiano estão geralmente alterados e necessitam de um "reset", possível com uma intervenção a nível do estilo de vida e farmacológico. Sem querer aprofundar esta questão, duas substâncias tem sido usadas com sucesso neste objectivo: a bromocriptina e melatonina. Relativamente a esta última, os níveis salivares podem também ser utilizados para inferir sobre esta cronobiologia individual. A terapia com melatonina também se tem revelado eficaz para um "reset" do nosso relógio interno e restauro do metabolismo normal.
O jejum intermitente e dietas com restrição calórica até ao final do dia estão na moda. Eu sou muito abordado nesse sentido e, não sei porque razão, alguns acham que eu sou favorável a esses regimes. Nada poderia estar mais longe da verdade e os motivos já estão explicados - interferência com a nossa cronobiologia. O nosso perfil hormonal normal coloca-nos num "estado de fome" durante o dia e saciedade à noite. Por outras palavras, deveríamos ter fome de manhã e menos ao final do dia. Os níveis de leptina são mais elevados à noite e os de cortisol mais baixos. Ora, isto é precisamente o contrário do que se verifica em muitos casos actualmente, e hábitos de refeições nocturnas favorecem isso mesmo. Embora os problemas não sejam notórios no curto prazo, e até possivelmente com bons resultados iniciais a nível da composição corporal, poderemos estar a entrar num caminho para a Síndrome Metabólica, especialmente quando se retorna a um padrão alimentar normal. Não posso deixar de salientar a importância de um pequeno-almoço rico em proteína para a manutenção de uma função adrenal saudável. Infelizmente, este não é um hábito nas sociedades modernas.
O nosso corpo adora rotinas e o ritmo circadiano pode ser "ensinado". Vários trabalhos em animais e no Homem têm mostrado que hábitos de refeições regulares ao longo do dia, à mesma hora, favorecem o metabolismo e reduzem o risco de obesidade. Isto deve-se a um ajuste hormonal e funcional ao evento da refeição, aumentando o dispêndio energético e optimizando os nossos mecanismos homeostáticos que respondem à ingestão de alimentos. Não é só o que comemos que conta. É também quando e como o fazemos. As refeições têm um papel importantíssimo na regulação do nosso ritmo circadiano e "relógio interno", bem como um sono regenerador e regular.
Quando falamos em disfunções metabólicas, como a diabetes e obesidade, o sono e o ritmo circadiano natural são muitas vezes deixados para segundo plano. O foco está sempre na dieta e exercício que, embora tenham um papel muito importante, não são os únicos factores envolvidos. E convenhamos... Em alguns casos nem está aí o problema, ou é bem mais complexo do que isso. Os profissionais de saúde têm sempre tendência a sobrevalorizar os aspectos que controlam e que estão treinamos para intervir - dieta e exercício. É normal que assim seja. Mas normal não significa óptimo, e uma intervenção óptima é global, mesmo que para isso seja necessária uma equipa multidisciplinar com valências nas várias vertentes da saúde.
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