Resistência à insulina: como avaliar?
Saúde

Resistência à insulina: como avaliar?



Se eu tivesse de escolher a disfunção metabólica com implicações mais profundas na saúde da população Ocidental não hesitaria - a Resistência à Insulina. Esta mesma insulino-resistência é uma força motriz para a obesidade, diabetes, aterosclerose e tudo o que podemos agrupar na chamada "doença cardio-metabólica". Avaliar a sensibilidade à insulina de um indivíduo é importante no diagnóstico precoce e prevenção de doença. No entanto, os painéis de análises rotineiras não permitem despistar estas alterações a nível da homeostase glicémica de uma forma precoce, mas apenas no limar da diabetes. Coloca-se então a pergunta: como avaliar?

A avaliação da sensibilidade à insulina não é tão simples como possamos pensar e requer um conhecimento profundo da dinâmica de secreção, cinética, e homeostase glicémica. O que farei aqui é uma breve introdução aos métodos de análise e interpretação dos valores, sem me alongar nos aspectos fisiológicos por detrás. Mas alerto que não será um artigo fácil de ler para outros que não profissionais de saúde.

A glicemia em jejum não é um bom indicador da sensibilidade à insulina e pode ser afectado por vários factores alheios à homeostase glicémica. Não é um bom indicador a tolerância periférica aos hidratos de carbono, sendo mais sensível a uma disfunção do metabolismo insulino-dependente no fígado, mais tardio neste continuum e sinal de um estádio mais avançado de resistência à insulina.  É um parâmetro de baixa correlação com testes dinâmicos mais robustos, como a Prova de Tolerância à Glicose Oral (PTGO).

Poderíamos agrupar os testes de sensibilidade à insulina e tolerância aos hidratos de carbono em 2 tipos:
  1. Parâmetros derivados de testes estáticos: insulina em jejum, índices derivados de parâmetros basais (ex: HOMA-IR e QUICKI
  2. Parâmetros derivados de testes dinâmicos - PTGO
A insulina basal, em jejum, tem sido proposta como um indicador de resistência à insulina de fácil análise e expedito em clínica. Apesar dos valores de referência admitirem um intervalo de 3-25 mcU/mL, vários trabalhos mostram que uma insulina basal superior a 7 mcU/mL pode ser já sinal de algum grau de resistência à insulina. No entanto, tal como acontece para a glicemia em jejum, trata-se de um indicador pouco informativo acerca de sensibilidade periférica à insulina, do músculo essencialmente, e mais diagnosticante de uma menor eficácia da insulina a nível do metabolismo hepático - menor inibição da neoglucogénese.

Com base nos parâmetros de jejum foram desenvolvidos algoritmos de maior correlação com a sensibilidade à insulina medida in vivo. O HOMA-IR e o QUICKI são os mais conhecidos e com maior grau de evidência na literatura científica, embora muitas vezes usados em exagero para além do limite da sua sensibilidade de diagnóstico.


Apesar da maior correlação do QUICKI com o "gold standard", o HOMA-IR é de longe o mais conhecido e usado. Não sei ao certo explicar a razão mas poderá ter a ver com a "matemática envolvida". Foi ainda desenvolvido o HOMA2-IR, revisto para uma maior validade fisiológica mas com um algoritmo apenas calculável com recurso a software, e com requerimento do péptido C como parâmetro, um indicador da função das células beta que raramente é avaliado em análises correntes.

Não existe um valor de corte consensual para o HOMA-IR, mas alguns estudos com populações Ocidentais sugerem inferior a 2 como ideal. No entanto, apesar de ser um índice interessante para uso em estudos epidemiológicos, deve ser usado com bom senso e sentido crítico em clínica. Um exemplo comum é o HOMA-IR num contexto de restrição calórica severa ou prática de actividade física intensa. Os valores de insulina tendem a baixar e condicionam o valor do índice, não reflectindo a real sensibilidade à insulina mas apenas uma hiposecreção basal.

A resistência à insulina é essencialmente um processo que se verifica em resposta a uma refeição. Como tal, não é difícil de entender as limitações que os parâmetros de jejum apresentam no seu diagnóstico. Os testes dinâmicos, baseados no PTGO, são muito mais robustos e informativos sobre o estado metabólico de um indivíduo.

O PTGO é um exame que se baseia na resposta glicémica à ingestão de 75 g de glicose, com jejum prévio, normalmente usado para diagnóstico de diabetes, e pré-diabetes. A interpretação tradicional foca-se exclusivamente no valor da glicemia às 2 horas, correspondente ao pós-prandial. Acima de 200 mg/dL temos o diagnóstico de diabetes, e entre 140 e 199 mg/dL, intolerância à glicose.


O PTGO apresenta alguns requisitos prévios de preparação que devem ser garantidos:

 


Limitar o PTGO ao período pós-prandial, 2 horas após a carda de glicose, é muito constrangedor da informação que podemos extrair nos pontos intermédios - 30 e 60 min. Além disso, a avaliação conjunta da insulina durante o exame permite-nos um quadro mais completo da homeostase glicémica e sensibilidade à insulina no contexto de uma refeição. Assim sendo, um PTGO deverá, dependendo da finalidade do mesmo, avaliar a glicemia e insulina aos 0 (basal), 30, 60, 90 e 120 min (pós-prandial).

Que tipo de informação podemos extrair de um PTGO?

Basal: os níveis basais refletem os valores de jejum, com todas as limitações que já discutimos. No entanto, aqui servem para calcular a variação entre os momentos temporais. Idealmente a glicemia basal estará abaixo dos 90 mg/dL, e a insulina abaixo de 7 mcU/mL.  

30 min: os 30 min refletem a fase inicial de secreção de insulina, que se quer a mais "robusta". A glicemia pode aqui atingir o seu pico, mas em muitas pessoas não é atingido antes dos 60 min. A insulina avaliada não resulta apenas do estímulo providenciado pela glicose sobre as células beta do pâncreas, mas em grande parte das incretinas segregadas no intestino.

Não existe um valor de referência para os níveis de glicose aos 30 min. No entanto, numa pessoa saudável, a glicemia nunca, em momento algum e independentemente da dose ingerida, deverá ultrapassar os 120-140 mg/dL. Acima de 140 mg/dL poderemos estar perante um caso de insulina-resistência.

Quanto à insulina, aos 30 min ela não deverá ultrapassar nunca as 60 mcU/mL. No entanto, a amplitude da variação relativamente ao basal deve também ser considerada, e não exceder as 10 vezes o valor de jejum. Por exemplo, para uma pessoa com insulina de 7 em jejum, o valor aos 30 poderá ir até aos 60, mas para um indivíduo com 3 de insulina basal, não deverá ultrapassar os 30.

A partir da variação da glicemia e insulina entre os 0 e 30 min podemos calcular o índice insulinogénico (I/G30 ou II), que idealmente se situa acima dos 20 mU/mmol em indivíduos saudáveis. A queda deste índice corresponde a uma deterioração da função das células beta e progressão para diabetes. Não é um índice pensado para avaliar a resistência à insulina, mas sim a resposta da insulina ao estímulo da glicose. Por outras palavras, o aumento da insulina por mmol de glicose elevada acima do basal.




60 min: é nesta fase que a maioria das pessoas atinge o seu pico glicémico, que, como referido, nunca deverá exceder os 140 mg/dL (120 seria o ideal na verdade) - [Glicose]MAX. Valores acima são sugestivos de insulina-resistência. Fisiologicamente significa que a insulina não está a fazer o seu papel de estimular a captação da glicose pelos tecidos periféricos e fígado. Os níveis de insulina não baixam e podem até subir relativamente aos 30 min, e manterem-se altos até aos 120 min, altura em que não deveriam exceder 5 vezes o basal.

120 min: é os 120 min que a OMS define o valor de corte de glicemia para a diabetes - 200 mg/dL. Intolerância à glicose entre os 140 e os 199. No entanto, estudos sugerem que em indivíduos saudáveis a glicemia aos 120 min não deverá exceder 20% dos níveis basais (LINK). Ou seja, para um indivíduo com uma glicemia de 80 aos 0 min, aos 120 min ela não deveria exceder 80 x 1,2 = 96 mg/dL. No pós-prandial os valores deverão retornar ao basal.

A experiência mostra-nos que olhando apenas para os valores de 120 min perdemos imensos casos de intolerância aos hidratos de carbono e resistência à insulina. Por exemplo:

Glicemia 0 min: 75 mg/dL
Insulina 0 min: 6 mcU/mL 
Glicemia 30 min: 130 mg/dL
Insulina 30 min: 57 mcU/mL 
Glicemia 60 min: 159 mg/dL
Insulina 60 min: 50 mcU/mL 
Glicemia 120 min: 130 mg/dL
Insulina 120 min: 39 mcU/mL


Segundo os critérios da OMS, estamos perante um indivíduo com uma homeostase glicemica normal (olhando apenas para os 0 e 120 min). No entanto, trata-se de um caso claro de insulino-resistência pelos motivos que mencionámos anteriormente. A [Glicose]MAX é superior a 140, e a insulina tende a baixar muito lentamente, mesmo não ultrapassando os 60 mcU/mL.

Existem ainda derivações dos testes dinâmicos, como o Índice de Stumvoll e Matsuda que ficam apenas para vosso conhecimento. 




Estes índices são pouco utilizados em clínica, e, de acordo com uma análise sistemática recente, não apresentam uma correlação significativamente maior do que o QUICKI ou HOMA-IR com o Gold Standard - clamp hiperinsulinémico euglicémico.


Como vêem, não é simples e linear avaliar a sensibilidade à insulina de um indivíduo. A medicina dispõe de ferramentas óptimas para dignóstico da doença - diabetes - mas não tão boas e consensuais para os estádios precoces de resistência à insulina. Considerando que esta disfunção está muito provavelmente na base de todas as doenças cardiometabólicas como as conhecemos hoje, é importante reconhecer e abordar o processo enquanto é tempo. Actuar onde a medicina funcional se coloca - PREVENÇÃO.



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