A leucina após o treino e seus efeitos nos níveis de insulina
Saúde

A leucina após o treino e seus efeitos nos níveis de insulina


por Sérgio Veloso

Há já algum tempo, fui abordado com uma pergunta pertinente. Porque razão os BCAA's aumentam a insulina, um efeito que, apesar de forma errónea, se atribui exclusivamente aos hidratos de carbono? Daí fui motivado a escrever sobre este assunto, num pequeno texto que agora partilho.


O papel das proteínas ou, mais concretamente, dos aminoácidos na nutrição humana é bem conhecido. Nas sociedades ocidentais, o consumo de proteína tem aumentado consideravelmente desde o final da 2ª Guerra Mundial e hoje quase que duplica a dose diária recomendada (RDA). No que diz respeito ao culturismo, no sentido lato da palavra, as proteínas sempre desempenharam um papel central na dieta, muitas vezes envolvidas numa mística de ideias sem qualquer suporte científico. Não é raro encontrar-mos recomendações na ordem das 4g/kg de peso corporal quando parece fisiologicamente evidente que um consumo superior a 1,2g/kg nada acrescenta ao desenvolvimento muscular estimulado pelo treino excêntrico. Refiro-me especificamente a este tipo de movimento já que é aquele que promove um maior trauma e, em consequência, maior síntese proteica. Sem querer por em causa a importância da experiência pessoal, a publicidade e os interesses associados deturpam a realidade e condicionam a informação que atinge o comum praticante. Embora este seja um tema interessante, não é o foco deste artigo. Pretendo apenas apresentar “o outro lado” dos aminoácidos, onde darei destaque à leucina (Leu), e o seu papel na modulação do metabolismo da glicose e homeostase energética. Não é minha pretensão desenvolver de forma aprofundada a bioquímica envolvida mas alguns aspectos são incontornáveis. Se ficar confuso e indeciso, então os meus esforços não foram em vão. Significa que compreendeu a complexidade e incongruências do tema que são alias apanágio das extrapolações da biologia fundamental para a suplementação humana.

Em 2001, Jeffrey Greiwe e colaboradores da Washington University School of Medicine, publicaram o seu trabalho sobre o efeito insulino-independente da leucina na estimulação da síntese proteica. Desde então, alguns fabricantes exploraram o uso deste aminoácido na suplementação desportiva, entre as quais destaco a bem conhecida Muscletech e o seu Anator P70. Pondo de parte os compostos de nome sonante que nada fazem para além de lhe dar um aspecto mais “hardcore”, trata-se de uma combinação de L-leucina e D-glucose, vulgo dextrose. Muito sucintamente, Greiwe comparou o efeito da Leu e da insulina na fosforilação da proteína ribossomal S6 cinase (p70S6k, daí o nome Anator P70). Esta enzima é chave na síntese proteica e é positivamente regulada pela via mTOR (mammalian target of rampamycin). O mTOR pode por seu lado ser activado pela sinalização insulínica e, como foi provado no referido trabalho, pela leucina de forma independente. A fosforilação (activação) de p70S6k aumentou 4x em resposta a leucina, 8x em resposta à insulina e 18x quando as duas eram combinadas. Isto sugere, para além de um efeito independente, uma sinergia entre a leucina e insulina já que o efeito combinado é superior à soma das partes. Adicionalmente, outros trabalhos revelaram um papel insulinotrópico da leucina. A hiperinsulinémia induzida poderia também ser vista como mais uma ajuda na “window of opportunity” pós-treino. E como contribuição, foi também demonstrado o efeito anti-proteolítico da Leu no tecido muscular. É então lógico pensarmos que a suplementação com L-leucina e glicose, o estimulador da insulina por excelência, é benéfica para a síntese proteica e para o desenvolvimento muscular certo? Sim... mas a que preço?

Já são antigos os estudos que revelam níveis elevados de aminoácidos no plasma de indivíduos obesos. Os seus múltiplos aspectos na regulação do metabolismo da glicose e acção da insulina têm sido descortinados nos últimos anos e parece hoje claro que a manipulação dietética influencia os seus efeitos no músculo esquelético. Estudos em indivíduos saudáveis mostram que elevações transcientes nos níveis plasmáticos de aminoácidos estão associados a uma menor absorção da glicose nos tecidos periféricos, nomeadamente no músculo. O mesmo foi provado para infusão de leucina. Ora, esta evidência contraria o efeito insulinotrópico da Leu se nenhuma outra alteração metabólica tivesse lugar. Estamos no entanto perante uma situação de resistência à insulina ou intolerância à glicose. Este efeito negativo dos aminoácidos está associado à fosforilação inibitória do IRS-1 (insulin receptor substrate-1) e bloqueio da via PI3K, um importante mediador da acção da insulina. Peço desculpa pela introdução abrupta destes termos aos menos familiarizados com bioquímica mas o domínio destes processos não me parece essencial para a compreensão do ponto que quero marcar. Voltando ao mTOR, vimos que tanto a insulina como a leucina têm a capacidade de o estimular, embora por vias distintas. A insulina estimula mTOR através da via PI3K/Akt, num mecanismo que regula a sua própria acção por inactivação de IRS-1 e consequente inibição retroactiva de PI3K. A leucina, um potente activador de mTOR, reduz a activação de PI3K pela insulina, enquanto que a rampamicina, antagonista de mTOR, tem um efeito contrário (estimulador). É assim claro (ou se calhar não é) um feedback negativo com potencial deletério no controlo da sinalização insulínica induzido pela leucina. Por outras palavras... O mTOR inibe os mecanismos de sinalização de insulina de forma retroactiva quando por ela estimulado, mas quando o aumento de mTOR é induzido pela leucina, a mesma inibição ocorre. Desta forma, diminui a captação de glicose por parte das células e a insulina acumula-se no sangue, resultando nos valores elevados que são relatados pelas companhias de suplementos. Basicamente é isto. O preço da hiperinsulinémia é uma disfunção metabólica.

E o que é a resistência à insulina? Certamente que muitos de vós já viram este conceito associado a patologias como a diabetes tipo II. Esta doença bem conhecida deriva de uma incapacidade do pâncreas em produzir insulina suficiente para satisfazer as necessidades aumentadas pela ineficácia do seu efeito. Traduzindo, insulina menos eficiente resulta numa maior quantidade de glicose no sangue, estimulando a secreção de mais insulina. Este esforço adicional agride as células beta e resulta na sua disfunção ou mesmo morte. Explicar todos os mecanismos envolvidos e consequências fisiológicas seria uma exposição bem maior que este texto. Muito superficialmente, a resistência à insulina, ou intolerância à glicose, trata-se do bloqueio da sinalização insulínica e das acções biológicas que lhe são reconhecidas. De forma errada, tem sido passada a ideia que a insulina tem efeitos negativos no organismo, apesar de na comunidade culturista o seu papel anabólico ser reconhecido e valorizado. Um indivíduo com hiperinsulinémia compensatória está em risco de:

- Dislipidémias: TG elevados, HDL-C baixo, sdLDL altos e hipertrigliceridémia pós-prandial;
- Fígado gordo
- Disfunção endotelial: vasodilatação anormal e propensão à inflamação;
- Risco trombótico;
- Hipertensão;
- Metabolismo do ácido úrico anormal;
- Apneia de sono;
- Etc.

Para informação mais detalhada, aconselho a excelente revisão de Reaven cuja referência pode ser encontrada no final deste artigo.

Resumindo, os aminoácidos parecem desempenhar um papel importante na patogénese da resistência à insulina por modelação da função endócrina e interferência nas vias de transdução de sinal. Não é de estranhar o efeito hiperinsulinémico observado considerando a redução na absorção periférica de glicose. Este aumento da glicémia é ele próprio responsável pelo estímulo adicional à secreção de insulina, num processo que em tudo se assemelha a disfunções metabólicas. Será então benéfica a suplementação em aminoácidos livres, particularmente com os BCAA’s (leucina, isoleucina e valina)? Que consequências terá para o organismo quando combinado com doses elevadas de glicose? Perante o que foi apresentado, cabe a si considerar.

Sérgio Veloso
Jekyll, www.bodybuilding-pt.com

Referências:

Abumrad N., Robinson R., et al. (1982). The effect of leucine infusion on substrate flux across the human forearm. Journal of Surgical Research. 32:453.

Felig P. (1969). Plasma amino acid levels and insulin secretion in obesity. New England Journal of Medicine. 281:811.

Greiwe J., Kwon G., et al. (2001). Leucine and insulin activate p70 S6 kinase through different pathways in human skeletal muscle. American Journal of Physiology, Endocrinology and Metabolism. 281:E466.

Krebs M. (2005). Amino acid-dependent modulation of glucose metabolism in humans. European Journal of Clinical Investigation. 35:351.

Linn T., Strate C., et al. (1999). Diet promotes beta-cell loss by apoptosis in prediabetic nonobese diabetic mice. Endocrinology. 140:3767.

Reaven G. (2005). The insulin resistance syndrome: Definition and dietary approaches to treatment. Annual Reviews Nutrition. 25:391.

Schneider K., Laube H., et al. (1996). A diet enriched in protein accelarates diabetes manifestations in NOD mice. Acta Diabetologica. 33:236.

Trembley F., Marette A. (2001). Amino acid and insulin signaling via the mTOR/p70 S6 kinase pathway. A negative feedback mechanism leading to insulin resistance in skelletal muscle cells. The Journal of Biological Chemistry. 276:38052.

Zanchi N., Nicastro H., et al. (2008 ). Potential antiproteolytic effects of L-leucine: observations of in vitro and in vivo studies. Nutrition & Metabolism. 5:20.



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