Dietas low-fat para o tratamento da hipercolesteremia: uma "Cochrane Review"
Saúde

Dietas low-fat para o tratamento da hipercolesteremia: uma "Cochrane Review"



Toda a gente sabe que a melhor intervenção alimentar para baixar o colesterol é seguir uma dieta baixa em gorduras, em particular em gorduras saturadas, essas malvadas. Pelo menos é essa a ideia que nos tentam vender. Embora tenha as minhas dúvidas que a colesteremia seja um factor causal directo da aterosclerose, admito que de facto as LDL estejam relacionadas com o risco cardiovascular e que possam ser bons indicadores clínicos. Onde ponho muitas dúvidas é na associação directa entre o teor lipídico e em colesterol da dieta com a colesteremia e risco cardiovascular. Uma revisão recente da “The Cochrane Collaboration” aborda a eficácia das intervenções dietéticas low-fat para o tratamento da hipercolesteremia adquirida. Uma ideia tão cimentada como a relação entre a gordura e o colesterol no sangue deverá ter certamente o suporte de numerosos ensaios clínicos que verificam, ou pelo menos reforçam, a causalidade entre as variáveis. Os resultados desta análise sistemática foram surpreendentes.


A frase de apresentação da “The Cochrane Collaboration” é auto-explicativa: “working together to provide the best evidence for healthcare”. Trata-se de uma rede internacional e independente de colaboradores que integra os resultados de vários ensaios clínicos em revisões sistemáticas e meta-análises, as “Cochrane Reviews”, no sentido de possibilitar decisões informadas por parte dos profissionais de saúde. O nome surgiu após Archie Cochrane (1909-1988), um epidemiologista britânico que defendeu os ensaios clínicos aleatórios como a única forma útil e robusta de estudar variáveis em medicina. A primeira vez que ouvi falar desta organização foi através de Ben Goldacre, um jornalista e médico inglês que no seu livro “Bad Science” dá numerosos exemplos de estudos mal conduzidos e más decisões médicas que poderiam ter sido evitadas com uma simples meta-análise dos dados disponíveis. Os enviesamentos dos estudos e efeitos do tamanho amostral são diluídos nas meta-análises que verificam a reprodutibilidade dos resultados, um requisito essencial da ciência herdado da física mas muitas vezes ignorado com consequências graves.

Uma equipa de investigadores australiana propôs-se a avaliar os efeitos de dietas low-fat na hipercolesteremia adquirida, sem causas genéticas hereditárias, comparar a sua eficácia com regimes hipocalóricos e terapia farmacológica, e investigar eventuais efeitos adversos destas intervenções. Para tal, fizeram uma extensa pesquisa em bases de dados científicas e registos de trials à procura de ensaios clínicos controlados e aleatórios que estudassem o efeito de intervenções low-fat no colesterol total, LDL e/ou HDL. Os critérios de inclusão foram os seguintes:


Como podemos constatar, não se tratam de critérios particularmente rigorosos. Curiosamente NENHUM estudo dos 3542 candidatos iniciais satisfizeram os requisitos estabelecidos. As principais razões de exclusão foram a utilização de populações mistas (com e sem hipercolesteremia ou com e sem doença cardiovascular), o que impossibilita quantificar o efeito isolado da variável, e outros não tiveram a duração razoável para esperar um efeito na colesteremia, um mínimo de 6 meses.

Os autores recomendam obviamente a realização urgente de ensaios clínicos delineados de forma adequada, uma vez que o elevado impacto sócio-económico da hipercolesteremia descontrolada assim o exige. Concluem também que “não existem evidências firmes publicadas para suportar a opinião generalizada de que as dietas pobres em gorduras reduzem de facto os níveis de colesterol no sangue”.

Não tenho grandes comentários a fazer já que a revisão não deixa grande margem para dúvida e é clara na sua conclusão. Penso que o resultado apanhou os próprios investigadores desprevenidos, que expõem no trabalho uma extensa metodologia de análise e suporte bibliográfico para a lógica das intervenções low-fat no tratamento primário da hipercolesteremia adquirida. A verdade é que existem ZERO estudos que abordem o assunto de forma séria e isolada. De onde vêm então as recomendações para reduzir as gorduras totais e saturadas? O grande impulsionador desta corrente foi Ancel Keys, ainda na década de 50, que embora se tenha confrontado com a hipótese de o colesterol dietético influenciar os níveis sanguíneos, elaborou uma teoria distorcida sobre a sua relação com as gorduras, em particular com as saturadas e de origem animal. Keys é provavelmente o homem por detrás da hegemonia dos hidratos de carbono na dieta moderna e, na minha opinião, foi quem deu o maior contributo singular para a epidemia actual de “doenças da civilização”. Mas mesmo meio século depois não houve clarividência para afastar ideias que a ciência não suporta e teorias que nunca foram validadas. Espero que esta revisão não siga o mesmo caminho de outros trabalhos do género e não caia no esquecimento daqueles com responsabilidades em saúde pública. Um outro aspecto deste estudo e que reforça a minha admiração pelas “Cochrane Reviews” é a publicação de um "não-resultado", algo apenas possível em entidades independentes de financiamentos interessados. Em ciência, provar que algo não existe e tão importante como provar que existe e publicar apenas os resultados positivos leva a um direccionamento perigoso da informação transmitida. Nas palavras de Gerald Reaven, “what is required is less advice and more information”, uma citação com mais de 15 anos mas nunca tão actual como hoje.



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