Memória muscular: existe mesmo? O treino de força como um seguro de saúde a contratar desde cedo
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Memória muscular: existe mesmo? O treino de força como um seguro de saúde a contratar desde cedo



É sabido que a recuperação da forma física, em particular a massa muscular, é relativamente rápida num atleta com experiência de treino em comparação com alguém destreinado. Este fenómeno é chamado na gíria de "memória muscular", um retorno rápido a um nível de músculo passado, que por algum motivo sofreu atrofia. Mas "memória" é uma coisa que só o cérebro se julgaria ter, e na verdade estamos de facto a falar de algo diferente.

Por definição, hipertrofia muscular é aumento de volume, seja ele por aumento do material contráctil - hipertrofia miofibrilar -, seja por expansão do volume do sarcoplasma - hipertrofia sarcoplasmática. Há também quem chame à hipertrofia sarcoplasmática de "não-funcional", o que para mim não faz qualquer sentido já que um músculo hiperhidratado é mais funcional, com maior capacidade de produção de força e síntese proteica. É expectável que um músculo maior "funcione" melhor, se os aspectos neuronais não estiverem de alguma forma afectados.

O processo de hipertrofia é complexo e com vários caminhos convergentes. Pode ocorrer por aumento do volume hídrico da célula com a expansão das reservas de glicogénio ou creatina, por exemplo, ou por aumento da síntese de material contráctil (actina e miosina) em resposta ao treino ou mesmo pressão hídrica interna. No entanto, e em particular no primeiro terço da nossa vida, um outro processo parece fulcral no aumento de massa magra e para esta "memória muscular" - as células satélite.

À periferia das nossas células musculares, os miócitos, existem outro grupo de células indiferenciadas a que chamamos de células satélite, com um papel relevante a nível de sinalização parácrina (células próximas), hipertrofia, e reparação de microtraumas. Durante um esforço físico, e em particular no treino de resistências a alta intensidade, geram-se lesões focais no músculo que necessitam de ser reparadas. É neste processo de regeneração do miócito que ocorrem as adaptações que permitem uma célula mais forte e com maior capacidade de trabalho, o que no fundo é o significado biológico da hipertrofia muscular. A microlesão leva a que sejam libertadas pelo músculo afectado citocinas inflamatórias e quimioatractivas, e IGF1-Ec, um factor de crescimento também conhecido como Mechano Growth-Factor (MGF).

Um dos papeis atribuidos a estas citocinas é a iniciação do processo inflamatório com recrutamento de células imunitárias para o local do microtrauma. No entanto, estas citocinas e o MGF, bem como as prostaglandinas geradas na cascata de inflamação focal, vão igualmente promover a proliferação, diferenciação em mioblastos, e migração das células satélite para a zona afectada. Estas células fundem-se com o músculo em regeneração, contribuindo com membrana celular, material contráctil, e com o seu próprio núcleo. Na verdade, o facto das células musculares serem multinucleadas está relacionado com a sua origem na fusão de vários mioblastos.

A síntese proteica começa no núcleo, e como tal, células com mais mionúcleos são mais eficientes a sintetizar material contráctil e proteínas de "housekeeping" em geral. Pensa-se que a "memória muscular" se deva de facto à quantidade de mionucleos presentes, e quanto mais maior a capacidade de recuperar um nível de massa muscular anterior a um processo de atrofia, causado por paragem dos treinos/estímulo, distúrbios hormonais momentâneos, doença, entre outros [LINK]. Por outras palavras, quanto mais treinado um indivíduo for, maior a quantidade de mionúcleos presentes no músculo, e mais fácil o retorno a um nível de massa muscular passado quando se regressa ao treino regular, mesmo sem grande esforço ou uma dieta imaculada. E esta "memória" pode durar 15 anos ou até mais!

Tendo em consideração a variabilidade interindividual no número de células satélite, e a perda de eficiência no processo por elas mediado com a idade, reforço a importância do treino de força no primeiro terço das nossas vidas, quando o processo de incorporação de mionúcleos está no auge. É dos "seguros" com mais retroactivos que podemos fazer. Aqui define-se em grande medida a capacidade, massa muscular, e fisiologia do próprio músculo em idades mais avançadas, sendo este um reconhecido indicador de boa saúde metabólica e longevidade. Treino de força sempre, e a começar cedo como um bom seguro de saúde para todos.




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