Saúde
O envelhecimento, a testosterona, e a terapia hormonal
O interesse pela reposição hormonal (HRT) como terapia anti-envelhecimento está a crescer em Portugal, um pouco a reboque do que se passa em países como os EUA onde é prática comum. No caso dos homens, é reconhecido que a produção de certas hormonas decresce com a idade, como a hormona do crescimento e testosterona. Deixando a primeira de lado por agora, a terapia de reposição com testosterona pode aliviar alguns sintomas muitas vezes associados ao avançar da idade. Além disso, vários estudos comprovam que a terapia hormonal a níveis fisiológicos pode reduzir o risco cardiometabólico. Mas toda esta "hype" em torno da HRT se baseia numa premissa: os níveis de testosterona decrescem significativamente com a idade. Mas será que tem mesmo de ser assim?
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Antes de responder a esta pergunta, convém falar um pouco da fisiologia da testosterona. Trata-se de uma hormona esteróide, um androgénio, produzida nos testículos em resposta a estímulos neuroendócrinos. A LH, uma hormona libertada pela hipófise, estimula a produção e secreção de testosterona para a circulação, onde é distribuída aos tecidos. Existe também produção de testosterona nas adrenais, embora nos homens seja pouco significativo para o global. A produção de testosterona obedece a um ritmo circadiano. O pico de concentração dá-se pela manhã, pelo que as avaliações laboratoriais devem ser efectuadas sempre entre as 7:00 e as 10:00 para permitir padronização, idealmente 1h depois de acordar. Este padrão de secreção é mantido quando envelhecemos.
A distribuição é feita na forma livre (2-3%), ligada à SHBG (cerca de 45%), ou ligada à albumina (50%). Considera-se que a testosterona livre e a associada à albumina seja a que apresenta biodisponibilidade, ou seja, que terá acção no organismo. A ligação à albumina é muito fraca e afectada por outras moléculas em circulação. Por seu lado, a testosterona associada à SHBG é biologicamente inactiva. Portanto, embora o diagnóstico clínico ainda se baseie muito nos níveis totais de testosterona, é a concentração de testosterona biodisponível que tem significado biológico.
Infelizmente, a prática clínica tem-se dissociado do doente para se focar exclusivamente nos exames laboratoriais. Nada mais errado e perigoso. Mesmo com níveis de testosterona considerados normais, no primeiro tercil, é possível existirem sintomas de hipogonadismo (deficit de testosterona) e o doente beneficiar da terapia com androgénios. Com a idade é uma situação comum já que o declínio da testosterona está associado a um aumento da SHBG, ou seja, uma redução ainda maior da fracção biodisponível. Além disso, os valores de referência não são mais do que um reflexo do “normal” na população. O problema é que se trata de uma população “anormal”, doente. Normal não significa óptimo, e é isso que procuramos. Portanto, o diagnóstico de hipogonadismo deve ser feito tendo em conta não só as análises bioquímicas mas também a sintomática do indivíduo.
Existem vários sintomas que podem ser associados ao declínio dos níveis de testosterona. Os mais comuns são perda de líbido, disfunção eréctil, depressão, desequilíbrios emocionais, perda de memória e declínio cognitivo. As alterações da composição corporal são normalmente notórias, com um aumento da massa gorda, perda de massa muscular e força, e redução da densidade mineral óssea. Por vezes ocorre também ginecomastia, derivado da redução do rácio testosterona:estradiol. Mas é importante lembrar que muitos destes sintomas são comuns a outros processos associados á idade, pelo que os exames laboratoriais devem sempre fazer parte complementar do diagnóstico.
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Acções da testosterona no organismo |
Homens com níveis de testosterona total inferiores a 12 nmol/L e que apresentem sintomas de hipogonadismo podem beneficiar da terapia de reposição. Acima de 12 nmol/L é provável que os sintomas se devam a outras causas. Reforço no entanto a importância de centrar a terapêutica na pessoa e não nos valores de referência. Se forem feitas avaliações periódicas ao longo dos anos podemos identificar facilmente um declínio associado à idade ou às suas co-morbilidades. O diagnóstico de hipogonadismo não deve ser feito apenas com uma avaliação, mas confirmada com uma segunda análise em que as gonadotropinas (LH e FSH) e prolactina são também quantificadas de forma a despistar problemas a nível da hipófise.
Os poucos estudos longitudinais que foram feitos mostram um declínio nos níveis de testosterona total na ordem dos 1-2% por ano a partir dos 30 anos. A testosterona livre parece cair de forma mais acentuada, na ordem dos 2-3%, o que é explicado pelo aumento da SHBG. Curiosamente, os níveis de gonadotropinas (LH) muitas vezes aumentam, e a capacidade dos testículos responderem à hCG (uma hormona que estimula a secreção de testosterona) é reduzida. Isto significa que o hipogonadismo associado à idade não é de origem hipofisária mas sim testicular ou funcional.
Baixos níveis de testosterona estão associados à obesidade, particularmente visceral, aterosclerose, hipertensão, resistência à insulina, diabetes, depressão e osteoporose. Não é portanto de estranhar que o hipogonadismo nos homens esteja associado a uma maior mortalidade geral. No entanto, e como não me canso de sublinhar aqui no blogue, associação não significa causalidade. Temos de olhar sim para os resultados dos ensaios clínicos com reposição hormonal que têm sido efectuados até ao momento.
Os benefícios da reposição hormonal nos homens têm sido corroborados por alguns ensaios clínicos, mas não todos. A níveis fisiológicos, a terapia com testosterona pode melhorar marcadores de saúde cardiovascular, parâmetros da homeostase glicémica, reduzir a HbA1C, aumentar da densidade mineral óssea, potenciar a função sexual e líbido, e melhorar a função cognitiva. Um dos efeitos mais marcados é sobre a composição corporal, reduzindo a acumulação de gordura visceral e aumentando a massa magra. No entanto, é bom salientar que estes resultados são em homens com hipogonadismo aos quais foram repostos os níveis fisiológicos. Acima destas concentrações, existem indícios de que a testosterona poderá ser nefasta a longo prazo. Existe o risco de neoplasias da próstata, fígado, policitémia, entre outros.
No que respeita à terapia farmacológica, existem várias opções no mercado mas, por razões óbvias, não vou entrar a fundo neste campo. Os ésteres injectáveis são a opção terapêutica preferencial, embora não sejam de todo o ideal. A esterificação a um esqueleto carbonado permite aumentar o tempo de acção e reduzir a frequência das injecções. O problema é que as concentrações não são muito estáveis e podem ocorrer picos suprafisiológicos nos dias seguintes à administração. Este problema foi contornado com o éster mais recentemente introduzido no mercado, o undecanoato de testosterona injectável (Nebido), permitindo concentrações plasmáticas bastante estáveis com administração trimestral. Para além dos ésteres injectáveis existem também preparações transdérmicas que possibilitam mimetizar parcialmente o ritmo circadiano natural. No entanto são pouco práticas e cómodas para o utilizador.
Existe uma grande variação na resposta individual à terapia com testosterona, em particular com os ésteres longos. A sensibilidade aos picos suprafisiológicos dependem do indivíduo, e alguns são mais susceptíveis a aromatização. A aromatase é a enzima que converte a testosterona em estradiol, resultando em efeitos indesejados como um edema acentuado e ginecomastia, por exemplo. Além disso, os androgénios como a testosterona têm alguma afinidade para os receptores de progesterona. O aumento da actividade progestagénica pode também ela estar associada a alguns efeitos secundários associados à terapia. Há uma grande variabilidade individual entre os homens a nível da sensibilidade às progestinas.
Mas o objectivo deste artigo não é falar da terapia de reposição hormonal, e muito menos passar a ideia de que sou apologista desta via para todos os homens com níveis baixos de testosterona. Isso estaria bem longe da verdade. É assumido quase como um fado que a testosterona decresce quando envelhecemos. Mas será esse declínio significativo e relacionado somente ao envelhecimento biológico, ou estará mais associado às co-morbilidades que nos acompanham e que se agravam com o avançar dos anos? Eu acredito que sim. A redução dos níveis de testosterona está mais associada ao nosso estilo de vida do que à nossa biologia.
Os estudos longitudinais, que acompanham os participantes ao longo do tempo, têm mostrado de facto um declínio dos níveis de testosterona com o avançar dos anos. Mas poucos foram os que fizeram uma análise multivariada para isolar o efeito da idade de outros factores. O Massachusetts Male Aging Study, um estudo longitudinal epidemiológico com quase 2000 indivíduos, revelou que de facto os níveis de testosterona parecem diminuir com a idade, mas que esse declínio se torna muito mais acentuado com o aumento do IMC (índice de massa corporal) [link]. Os autores concluem que existe a possibilidade de travar o declínio hormonal com intervenções a nível do estilo de vida.
Esta questão ficou ainda melhor ilustrada num estudo publicado há alguns dias no Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism [link]. Numa coorte de 1588 homens Australianos com mais de 35 anos ao início do estudo, os níveis de testosterona decresceram em média 0,80% ao ano, um resultado em linha com observações anteriores. No entanto, o declínio em homens que não foram diagnosticados com doenças crónicas durante o período de observação foi de apenas 0,27% ao ano. A obesidade, particularmente a visceral, revelou-se também associada a um declínio mais abrupto da testosterona, tal como a depressão ou o estado civil. De acordo com os resultados de estudos anteriores, estar casado na meia-idade, depois dos 35 anos, parece associado a níveis de testosterona mais elevados, o que se deve provavelmente a um menor stress social. Deixar de fumar parece reduzir os níveis de testosterona devido ao efeito inibidor da nicotina sobre a aromatase ou, possivelmente, ao ganho de peso que muitas vezes o acompanha. O declínio da testosterona associado à idade não parece então ser inevitável, mas largamente explicado pelas alterações no estilo de vida e estado de saúde, em particular obesidade e stress.
A obesidade é um factor que reconhecidamente reduz os níveis de testosterona, em particular quando a deposição é a nível abdominal. E quando falo em obesidade não é do IMC, mas sim do excesso de gordura. Pela minha experiência é muitíssimo comum encontrar homens com peso normal mas com gordura excessiva. Esta “obesidade de peso normal” é um flagelo nos dias de hoje e igualmente perigosa a nível cardiometabólico. Não existem certezas quanto aos factores que ligam a adiposidade ao declínio da testosterona. Várias hipótese têm sido propostas, como o aumento da leptina, inflamação, ou maior actividade da aromatase. A gordura é um local de grande actividade desta enzima, aumentando a conversão em estrogénios e retroinibição da testosterona.
Assim sendo, a perda de gordura deve ser a primeira intervenção quando os sinais fisiológicos do declínio da testosterona aparecem. O exercício físico pode ser duplamente útil neste processo. É sabido que a prática de exercício é particularmente eficaz na redução de gordura visceral devido à elevada densidade de receptores beta-adrenérgicos que este tecido apresenta. O exercício estimula a adrenalina e noradrenalina que actuam nestes receptores promovendo lipólise. Além disso, o treino de força pode elevar os níveis de testosterona e ajudar a minimizar os sintomas, permitindo também a preservação da massa magra. O exercício funciona como um modelador do stress, optimizando a função das glândulas adrenais e resposta aos estímulos externos, um factor igualmente associável à redução da testosterona.
Como referi, a prática de exercício físico é de grande utilidade para lidar com os sintomas de hipogonadismo e até funcionar com resultados terapêuticos. No entanto, vejo muitos casos de jovens atletas recreativos com baixos níveis de testosterona, inferiores ao que seria desejável até para maximizar os ganhos no ginásio. Na maior parte dos casos, isto está associado a uma dieta pobre e abaixo das necessidades energéticas durante demasiado tempo. Este “hipogonadismo auto-induzido” é comum quando o treino se associa a uma restrição calórica crónica. Mas embora seja identificável nas análises laboratoriais, muitas vezes é silencioso, sem sintomas aparentes. Na verdade, é possível ter baixos níveis de testosterona sem identificar os sintomas comuns. E mais uma vez reforço, o que é normal para um pode não ser para outro.
Para terminar, uma breve menção aos suplementos alimentares que alegadamente se destinam ao aumento dos níveis de testosterona. Os mais comuns são o Tribullus e o ZMA. Nenhum deles mostra evidência de que de facto exerça um efeito significativo a esse nível. Outros introduzidos mais recentemente, como o ácido D-aspártico, têm alguns trabalhos a sugerir a sua eficácia. No entanto, os estudos efectuados até ao momento são poucos e de qualidade duvidosa. Embora estes suplementos possam ajudar no processo para quem sofre de hipogonadismo, o seu impacto é ridículo quando comparado às intervenções no estilo de vida. De qualquer forma, se os factores que levam ao declínio hormonal não forem intervencionados, o eventual efeito destes produtos será largamente anulado.
Concluindo, o declínio da testosterona com a idade não tem de ser tão significativo como se pensa. Um homem livre de doenças crónicas, com baixos níveis de gordura e fisicamente activo pode manter níveis muito estáveis ao longo dos anos. Além disso, uma intervenção no estilo de vida e perda de gordura podem ser suficientes para minimizar os problemas associados à redução da testosterona. A terapia de reposição não deve ser a primeira opção. Mas a verdade é que em saúde devemos ter sempre uma atitude preventiva. É na juventude que devemos assegurar uma velhice saudável, natural. Ao contrário do que se pensa, o declínio hormonal não é um fenómeno necessariamente associado ao envelhecimento biológico, mas sim o resultado de uma sociedade de hábitos decadentes.
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