O exercício faz mal? Quem disse isso?
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O exercício faz mal? Quem disse isso?



Nos últimos artigos e posts no Facebook tenho levantado algumas questões que incidem sobre aspectos menos positivos da actividade física estruturada no contexto actual. Algumas pessoas levantaram-se em sua defesa como se de um ataque se tratasse (várias). Eu nunca disse, nem quis dizer de forma subentendida, que o exercício fazia mal. Por favor... Nós já não estamos aí. Estamos sim na altura de ir mais além. Pensar no exercício integrado na realidade de cada um, e personalizado às necessidades individuais daquele sistema - pessoa. Isto é dar mérito, e não tirar valor.

Vamos de uma vez por todas ver o exercício como ele é - stress. Conotamos habitualmente esta palavra como algo negativo, mas na verdade o stress não é mais do que um estímulo que gera adaptação, positiva ou negativa mediante a capacidade de resiliência do nosso sistema. Na verdade, a palavra stress é bem recente no nosso léxico, com não mais de 50 anos. Hans Selye descreveu pela primeira vez um conjunto de reacções acionadas por um agente agressor ao organismo, ao que chamou Síndrome de Adaptação Geral. E a parte curiosa, é que esta reação não é diferente com diferentes tipos de stressors. E stress, hoje, é reconhecidamente um factor de risco para diversas patologias crónicas. Porquê? Porque a agressão é superior à nossa resiliência, e passou de aguda, pontual, para crónica.

Num sistema débil, que infelizmente é comum nos dias que correm, a capacidade de lidar com esforços físicos de alta intensidade é menor. A linha que separa a fisiologia da patologia é cada vez mais estreita. Daí ver com tanta frequência sinais do chamado Síndrome de Overtraining em "atletas da vida", um campeonato cada vez mais exigente e viciado. A capacidade de ver o ponto de equilíbrio de um sistema, de uma pessoa, é um dom que dá muito trabalho e requer muito estudo. E é por isto que os Personal Trainers são tão importantes. Não é um encontro que marcas na agenda. É um tratamento que vais fazer, é uma orientação para o teu objectivo no respeito integral às tuas capacidades. Isto sim torna-te mais forte, mais resiliente.

Se há altura má para um esforço de alta intensidade é ao final do dia, e a questão aqui prende-se com os nossos próprios ritmos biológicos. Por mais que os tentemos alterar artificialmente ou socialmente, a biologia tem a sua ordem. Os ciclos sono-vigília, ou dia-noite, ditam o funcionamento do nosso sistema neuro-hormonal. Um treino de alta intensidade após um dia em stress constante, quando na verdade deverias estar a abrandar (e por isso é que o cortisol baixa), cheio de estímulos visuais captados pelo núcleo supraquiasmático e percepcionados como sinais de alerta e para "despertar", desrregulam totalmente os ciclos naturais do nosso corpo com consequências que só agora se começam a descortinar, e das quais ainda só conhecemos a ponta do iceberg.

As aulas de grupo são um exemplo paradigmático. Uma mescla de emoções, estímulos sonoros, visuais, atenção dispersa em múltiplos aspectos e pouca consciência neuro-motora. Dei-vos um exemplo aqui, e das consequências. Aulas de alta intensidade e impacto é o que precisamos ao final do dia? Talvez não, mas isso não invalida a sua importância no fitness. A Les Mills fez muito pela indústria, e trouxe muita gente para os ginásios. Mas, caros profissionais do exercício, vamos abandonar o fitness empacotado e passar ao fitness personalizado. E isto não é dar valor à profissão? São necessários mais do que nunca.

Poderíamos pedir aos ginásios para oferecerem aquilo que nós precisamos, mas na verdade oferecem o que as pessoas querem. E podem ser criticados por isso? Não! É um negócio com toda a legitimidade e mérito. As pessoas sentem-se bem depois de um treino intenso à noite? Claro que sim... Endorfinas, adrenalina e cortisol aos potes. Mas não é isto que precisamos nesta altura, é sim de serotonina e melatonina, é sim de relaxar. Sublinho que problema de fundo não são os ginásios nem nunca foram. É a forma como a sociedade está estruturada, mas podemos adaptar-nos melhor a ela e é sobre isto que estamos a falar. É sobre isto que vale a pena discutir de forma séria. Nós aqui já estamos bem mais à frente da questão de se devemos ou não praticar exercício. Isso já nem é questão. Estamos a discutir a melhor forma de o enquadrar numa sociedade estruturada para o stress, e que viola os padrões biológicos do nosso organismo.

Darwin dizia que o Mundo não é dos mais fortes, não é dos mais inteligentes, é dos que melhor se adaptam às mudanças. Eu acrescento que não é dos mais rápidos, dos mais móveis, nem dos mais resistentes ou energéticos. É dos que melhor se adaptam às mudanças, e hoje o Mundo é um stress constante. Uma "habilidade" ser boa ou má, adequada ou desadequada, depende do contexto em que está inserida. Pode não ser o que mais precisas para máxima fitness, no verdadeiro significado da palavra - adaptação ao meio. Já não vivemos com medo do leão escondido no beco. Os agressores agora são outros.

Há uns tempos, para relaxamento da minha mente confusa e perturbada, estava a ler sobre aspectos em comum de pessoas bem sucedidas como CEOs de grandes empresas. Uma das coisas que me saltou à vista, vale o que vale, é que quase todos treinavam pela manhã. Não vale nada como argumento, mas o estilo de vida que levamos enquanto cá estamos define o que somos e onde chegamos (estou tão poético hoje...). A lei natural do Universo já é o da desordem máxima. Gastamos muita energia para manter esta organização complexa. Não precisamos de a destabilizar demais... só um bocadinho. Exercício sempre, mas dentro dos limites da nossa tolerância.

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