O mito do pH: a alimentação é capaz de influenciar o pH sanguíneo? — Parte 3
Saúde

O mito do pH: a alimentação é capaz de influenciar o pH sanguíneo? — Parte 3







Para quem ainda não teve a oportunidade, sugiro fortemente a leitura dos dois primeiros posts dessa série:
  • O mito do pH – Parte 1
  • O mito do pH – Parte 2

Na terceira e última parte, veremos qual é o efeito da ingestão de alimentos e dietas “acidificantes” sobre diversos marcadores e parâmetros de saúde, especialmente a saúde óssea  que é normalmente a mais citada como prejudicada quando a dieta é mais “acidificante” do que “alcalinizante”.


Estudos observacionais sobre a influência de alimentos “acidificantes” na saúde óssea

Sabemos que estudos observacionais estão muito longe de serem ideais para se determinar relações de causa e efeito. De qualquer maneira, vejamos o que eles têm a dizer sobre a hipótese que estamos discutindo.

Como era de se esperar, considerando o que foi discutido nos estudos do post anterior dessa série, as evidências provenientes a partir de estudos observacionais sugerem que dietas com elevada carga ácida (ricas em proteínas, enxofre ou fosfato) [1], em homens ou mulheres  adultos ou idosos , não estão associadas à menor densidade mineral óssea, à dureza ou força dos ossos, ao risco de fratura ou ao risco de desenvolvimento de osteoporose [2,3,4,5]. De forma semelhante, a excreção ácida ou o baixo pH na urina  ambos marcadores do consumo de uma dieta “acidificante”  não estão associados ao risco de fratura ou ao desenvolvimento de osteoporose [6].

Além disso, a maior ingestão de proteínas na dieta, principalmente aquelas de origem animal, é consistentemente associada à maior densidade mineral óssea, ao menor risco de fraturas e também ao menor risco de desenvolvimento de osteoporose [7,8,9,10,11,12,13,14,15,16,17,18,19]. Ou seja, mais uma vez temos boas evidências de que alimentos “acidificantes”, como aqueles ricos em proteínas [1], fazem justamente o contrário do que dizem por aí: eles podem melhorar, ao invés de piorar, a saúde óssea.

Quando, em estudos observacionais, não são encontradas evidências negativas da influência de dietas “acidificantes” sobre esses parâmetros de saúde, a verdade é que nem seria realmente necessário discutirmos o que os ensaios clínicos  aqueles estudos que normalmente têm maior capacidade de estabelecer relações de causa e efeito  apresentam como resultados para a relação entre dietas “acidificantes” e a saúde óssea. Mas, para fortalecermos nosso argumento, vejamos a seguir o que esses estudos têm a nos mostrar.


Ensaios clínicos que testaram o efeito de alimentos “acidificantes” na saúde óssea

O conjunto de evidências dos ensaios clínicos que avaliaram o efeito de dietas “acidificantes” e dietas ricas em proteínas sobre o metabolismo ósseo sugere que estas possuem um efeito neutro, ou levemente benéfico, no que diz respeito à manutenção da densidade mineral óssea, no risco de fraturas e em outros parâmetros que indicam boa saúde óssea [20,21,22,23,24,25,26,27].

Em alguns desses estudos, de fato há um aumento na excreção urinária de cálcio, e isso, a princípio, pode parecer ruim. Entretanto, é importante mencionar que uma maior excreção de cálcio não necessariamente significa que o corpo está “perdendo” cálcio, e muito menos que esse cálcio é proveniente dos ossos [21]. A regulação e manutenção do cálcio nos ossos vão muito além da absorção ou excreção desse micronutriente, sendo regulada por diversos outros fatores hormonais e metabólicos  como a vitamina D, os estrógenos e a vitamina K2. Na verdade, a maior excreção de cálcio, principalmente nesse contexto de não alteração de marcadores da saúde óssea, pode até ser benéfica, devido à possível redução na quantidade de cálcio livre circulante. [Esse tema provavelmente será abordado no futuro, quando discutirmos a importância e o metabolismo da vitamina K2].

Além disso, um estudo de meta-análise de 2009 verificou que, em todos os ensaios clínicos analisados, a suplementação ou o maior consumo alimentar de fosfato (que teoricamente é um mineral “acidificante”) foram benéficos no sentido de diminuir a excreção de cálcio na urina  independentemente do fato da ingestão dietética de cálcio ser baixa ou alta nos indivíduos estudados [28].

Os resultados de outro ensaio clínico sugerem que a ingestão de proteína animal pode ser superior ao da proteína de soja, tendo em vista que a primeira parece aumentar a biodisponibilidade de cálcio proveniente da alimentação [29]. Adicionalmente, o maior consumo proteico durante a perda de peso pode auxiliar na manutenção da saúde óssea e reduzir a perda de massa mineral nos ossos [30,31]. Por fim, vale ressaltar que o consumo de leite ou de proteínas lácteas  que são considerados, por algumas pessoas, como “acidificantes” ou prejudiciais à saúde óssea  também possuem um efeito neutro ou potencialmente benéfico no metabolismo ósseo [26,32].


Massa muscular, câncer e outros aspectos

Alguns pesquisadores sugerem que dietas com maior carga ácida seriam responsáveis por “forçar” o organismo a metabolizar alguns tipos de aminoácidos, fazendo com que as proteínas musculares sejam degradadas para isso  potencialmente resultando na perda de massa muscular [33,34].

Entretanto, é sabido que um maior consumo de proteínas, não necessariamente acima do que normalmente é recomendado (cerca de 1,0 g/kg/dia), é capaz de maximizar o balanço nitrogenado em humanos [35,36]. De maneira semelhante, um consumo adequado de proteínas, assim como sua suplementação  principalmente na população idosa , é capaz de atenuar a perda de massa muscular [37,38]. Ou seja, independentemente do que ocorra com o pH urinário, não há qualquer alteração do pH sanguíneo ou perda de massa muscular numa dieta com elevada carga ácida.

Em relação ao câncer, sabe-se há muito tempo que células cancerígenas e tumores normalmente se desenvolvem bem em ambientes ácidos, principalmente porque a redução do pH celular, ou extracelular, é deletéria para células normais, mas não para as células do câncer [39].

Por esse motivo, é possível presumir que dietas “acidificantes”, assim como outras condições clínicas ou patológicas que potencialmente modificam o pH sanguíneo, poderiam favorecer o desenvolvimento de pelo menos alguns tipos de câncer. Entretanto, não há qualquer evidência de que cargas ácidas provenientes da dieta seriam capazes de facilitar o crescimento de tumores [40], sem contar que são as próprias células cancerígenas que geram o ambiente ácido característico do câncer, devido ao aumento na via metabólica da glicólise anaeróbia e consequente produção de ácido lático [41]. Além disso, como discutido no último post, o pH sanguíneo não é modificado pela alimentação; por conseguinte, o pH de outros fluidos extracelulares  e muito menos do meio intracelular  também não será modificado pela alimentação.

E essa lógica final vale para praticamente todos os demais aspectos relacionados à saúde que teoricamente poderiam ser afetados por reduções do pH induzidos pela dieta.


Considerações finais

Em primeiro lugar, vale retomar o ponto chave dessa discussão: a modificação do pH urinário, principalmente no sentido de torná-lo mais alcalino (ou seja, aumento do pH), pode ser benéfica em alguns casos clínicos e patológicos. Isso não necessariamente implica em dizer que o pH urinário mais ácido será deletério, mas que, sim, um pH urinário mais básico pode auxiliar em algumas situações específicas. [Não citarei exemplos específicos para não sairmos do foco do texto e não torná-lo ainda mais longo].

Mas e as “dietas alcalinas”, que prometem diversos benefícios pelo fato de tornar nosso sangue e organismo menos ácidos? Funcionam?! Elas provavelmente serão efetivas e interessantes em alguns aspectos, principalmente por estimular o maior consumo de frutas e hortaliças. Porém, outros grupos alimentares que teoricamente são “acidificantes”  como as fontes de proteína animal  são fundamentais para garantir uma nutrição e saúde adequadas para boa parte da população, uma vez que fornecem diversos nutrientes essenciais. Portanto, é sempre importante avaliar as dietas, assim como os seus reais efeitos na saúde, a partir de uma perspectiva ampla e abrangente, para que seja possível visualizar de forma mais clara os benefícios  e potenciais “falhas”  que cada uma delas pode apresentar.

De qualquer maneira, após a exposição e discussão de todas essas evidências  incluindo os efeitos diretos da ingestão de alimentos “acidificantes” sobre o pH sanguíneo e sobre marcadores do metabolismo ósseo, assim como demais parâmetros de saúde , acredito que está mais do que claro que a alimentação não é capaz de reduzir o pH do sangue. A partir dos estudos observacionais e dos ensaios clínicos apresentados nesse texto, fica evidente que dietas ricas em proteínas e “acidificantes” não levam à perda de cálcio ósseo para que o pH sanguíneo possa ser mantido dentro do intervalo ideal de 7,35 a 7,45  se há algum efeito, esse efeito seria exatamente o oposto do apregoado: uma alimentação rica em proteínas, ou “acidificante”, beneficiaria a saúde e retenção de cálcio nos ossos.

Na área da nutrição, quando temos evidências sobre determinados assuntos, não podemos simplesmente “achar”. A ciência está aí para nos ajudar.


Posts da série pH:
  • O mito do pH  Parte 1
  • O mito do pH  Parte 2
  • O mito do pH — Parte 3




Referências

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2. Pedone C, et al. Quality of diet and potential renal acid load as risk factors for reduced bone density in elderly women. Bone. 2010;46(4):1063-7.

3. McLean RR, et al. Dietary acid load is not associated with lower bone mineral density except in older men. J Nutr. 2011;141(4):588-94.

4. Fenton TR, et al. Causal assessment of dietary acid load and bone disease: a systematic review & meta-analysis applying Hill's epidemiologic criteria for causality. Nutr J. 2011;10:41.

5. Jia T, et al. Dietary acid load, kidney function, osteoporosis, and risk of fractures in elderly men and women. Osteoporos Int. 2014 [Epub ahead of print].

6. Fenton TR, et al. Low urine pH and acid excretion do not predict bone fractures or the loss of bone mineral density: a prospective cohort study. BMC Musculoskelet Disord. 2010;11:88.

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