Viés de confirmação & Nutrição
Saúde

Viés de confirmação & Nutrição





O viés de confirmação nada mais é do que a tendência de concordamos com aquilo que “queremos” concordar ou acreditarmos em coisas que “queremos” acreditar (consciente ou inconscientemente). Ou seja, a tendência de aceitarmos melhor as informações que confirmem nossas próprias crenças, ideias ou hipóteses sobre determinado assunto.

É muito comum e fácil de perceber o viés de confirmação em alguns momentos, como no caso de tópicos que envolvem a política. Considere que você (ou algum conhecido) acredite e concorde com a ideologia "X" que determinado representante político defende. Agora, imagine que uma fonte confiável de informações divulgue fatos ou informações que acabam por abalar a credibilidade do seu político de preferência.

Num primeiro momento, será consideravelmente difícil tentar conciliar a ideia de que, “do nada”, uma pessoa que possui uma ideologia como a sua, e que defende princípios como os seus, poderia estar sendo acusado de algo que possa manchar sua imagem  sendo acusado de corrupção pelo recebimento de propina, por exemplo. Esse conflito na assimilação de ideias incongruentes é chamado de dissonância cognitiva. O “desconforto mental”, característico da dissonância cognitiva, ocorre quando alguém passa a ter duas ou mais ideias conflitantes para lidar, ou quando somos expostos a novas informações que contradizem nossas crenças, ideias ou valores pré-existentes.

Apesar disso, o momento de dissonância cognitiva muitas vezes é fugaz, justamente porque estamos sempre muito suscetíveis ao viés de confirmação. Para visualizarmos melhor, vamos voltar ao nosso exemplo. No momento em que surgirem novas informações que neguem ou atenuem as críticas e acusações inicialmente feitas ao político de sua preferência  mesmo que esses novos fatos não venham de uma fonte com tanta credibilidade , a tendência natural é que você “queira” acreditar nelas, exatamente porque essas informações farão com que suas ideias e valores pré-concebidos se ratifiquem novamente. Viés de confirmação.

Mas por que estou falando disso? Porque o viés de confirmação é quase que onipresente no meio científico, e muito prevalente na nutrição. E o grande problema é quando ele acaba por influenciar de forma negativa a evolução do conhecimento e a progressão da ciência, consequentemente prejudicando os avanços na saúde  que é o foco da nossa discussão aqui no blog.

Especificamente na nutrição, sempre temos inúmeros exemplos. Ficarei apenas com um, que é clássico: a gordura saturada. A maioria dos nutricionistas e profissionais de saúde ainda é contra o consumo liberado de gordura saturada, normalmente citando que esse nutriente leva ao aumento de gordura corporal, doenças cardiovasculares, inflamação, resistência à insulina etc.

Assim, como esses indivíduos possuem crenças pré-estabelecidas sobre a gordura saturada, qualquer tipo de comentário ou evidência que confirme suas ideias, por menor que seja a credibilidade da fonte, será facilmente aceito, internalizado, reproduzido e propagado. E isso é ruim, porque o conhecimento e informações corretas, que poderiam avançar e contribuir para que as pessoas façam escolhas melhores e mais conscientes, ficam estagnados. Além disso, já sabemos que a ingestão de gordura saturada não causa os malefícios anteriormente citados (veja os links acima).

De forma semelhante, até mesmo a metodologia de estudos científicos pode ser delineada para que hipóteses pré-concebidas sejam confirmadas. Inúmeros são os trabalhos científicos em que os pesquisadores escolhem ou manipulam variáveis para que os resultados das pesquisas caminhem de acordo suas ideias: tipo de célula e condições do meio de cultura (em estudos realizados em células); tipo e linhagem do animal (em estudos feitos com animais); condições clínicas ou patológicas dos indivíduos (em estudos realizados com humanos) etc. Para ficarmos no mesmo tema, se você se deparar com um estudo em células, ou animais, que “condena” as gorduras como um todo, ou especificamente a gordura saturada, avalie a situação com muito, muito cuidado  justamente porque as condições experimentais utilizadas normalmente são enviesadas, além de normalmente não refletirem em praticamente nada a fisiologia humana [1].

E o viés vale para os dois lados, como eu comentei nesse texto aqui. No caso, não usei a definição “viés de confirmação”, mas foi exatamente o que aconteceu quando, na época, o estudo discutido nesse post foi publicado. Como foi um estudo que ia de encontro com as crenças daqueles que defendem que as gorduras em geral, inclusive a gordura saturada, não fazem mal à saúde  pessoas com as quais eu concordo , ninguém a favor dos resultados do estudo criticou as limitações (existentes) desse trabalho científico.


Viés de confirmação x Dietas low-carb

De qualquer maneira, o fator que motivou o desenvolvimento desse atual texto foi outro. Foi, na verdade, a publicação desse estudo:


Effects of the Dietary Approach to Stop Hypertension (DASH) diet on cardiovascular risk factors: a systematic review and meta-analysis [2]


Não estou criticando o estudo em si, e nem mesmo o tipo de dieta que ele analisa, mas sim a complacência que as pessoas têm com a dieta DASH (e outras dietas supostamente saudáveis), principalmente quando comparamos a outras dietas mais “polêmicas”.

O estudo em questão é uma meta-análise, que juntou vários estudos individuais para se avaliar o efeito que a dieta DASHpossui sobre fatores de risco cardiovascular. A dieta DASH, já conhecida há um bom tempo [3,4], nada mais é do que um conjunto de práticas alimentares voltadas para a redução da pressão arterial e, consequentemente, da diminuição de doenças e mortalidade associadas a essa condição patológica.

Nesse caso, o problema  como mencionei acima  é com a repercussão que as evidências têm. Se compararmos essa meta-análise de estudos com a dieta DASH às meta-análises de estudos com as dietas low-carb, veremos a diferença no julgamento e a influência que o viés de confirmação possui.

Os estudos individuais incluídos na meta-análise da dieta DASH duraram, no máximo, 24 semanas (6 meses); ou seja, a partir disso é possível inferir que não há estudos com a dieta DASH com duração maior do que esse período. Por outro lado, se pegarmos as meta-análises de dietas low-carb que avaliaram os mesmos fatores de risco cardiovascular, 7 delas (de um total de 9 existentes) incluíram apenas estudos que duraram 6 meses ou mais [5,6,7,8,9,10,11].

É claro que alguém pode dizer: “Mas existem mais estudos individuais que testaram os efeitos das dietas low-carb, e por isso também terão mais estudos de médio e longo prazo (6 meses ou mais)”. Isso realmente é verdade. Entretanto, de forma alguma invalida o fato de que os estudos com dieta low-carb possuem maior duração. E isso é um ponto importantíssimo, porque quanto maior a duração de estudos de intervenção (ensaios clínicos), maior será sua capacidade de determinar relações de causa e efeito.

Assim, o simples fato de haver (muito mais) estudos de médio e longo prazo  6 ou mais  para as dietas low-carb, enquanto que não existem estudos com essa mesma duração para a dieta DASH, fortalece muito o poder de evidência para esse primeiro tipo de dieta.

Mesmo assim, qual é a primeira coisa que muita gente diz ao ver uma meta-análise (que incluiu diversos estudos individuais) que demonstra benefícios de dietas low-carb no médio ou longo prazo? “Ah, mas 6 meses, ou até mesmo 1 ou 2 anos, não é tanta coisa assim. Mais estudos de longo prazo precisam ser conduzidos para que se tenha certeza sobre a efetividade ou segurança das dietas low-carb” [12].

Enquanto isso, o que as pessoas vão falar da dieta DASH? “Nossa, que resultados interessantes! A dieta DASH realmente parece reduzir o risco cardiovascular”. Mesmo considerando que os estudos incluídos na meta-análise são, no máximo, de 6 meses de acompanhamento.

E por que isso acontece? Porque algumas práticas incluídas nas dietas low-carb vão contra o senso comum e o conhecimento popular, além de normalmente incluírem alimentos e nutrientes que, historicamente, foram condenados por fazerem mal à saúde: muita gordura total, gordura saturada, proteína de origem animal etc. Porém, apesar de fortemente recomendar o consumo de vegetais e hortaliças, essa parte normalmente é ignorada por aqueles que não querem concordar ou são contra as dietas low-carb

Por outro lado, a dieta DASH aconselha a ingestão de alimentos e nutrientes que, ao longo dos anos, foram considerados mais “saudáveis”: frutas, hortaliças, carnes magras, leite desnatado etc. Além disso, há recomendação para redução de colesterol, gordura total e gordura saturada na dieta, com aumento de alguns nutrientes mais específicos como potássio, cálcio e magnésio.

A dieta DASH é inclusive ensinada em instituições de ensino superior, para estudantes de graduação em Nutrição. Eu aprendi sobre essa dieta na universidade. E as dietas low-carb? Na universidade? Nem um piu...

O mais intrigante talvez seja o fato de que ambas as dietas recomendam fortemente o consumo de vegetais e hortaliças, o que, obviamente, é positivo para ambos os lados. O objetivo aqui não é criticar a dieta DASH, ela foi apenas o “bode expiatório”.




As pessoas muitas vezes só enxergam o que querem enxergar, ou acreditam no que querem acreditar. Viés de confirmação.

Dois pesos e duas medidas?




Referências

1. Lai M, et al. You are what you eat, or are you? The challenges of translating high-fat-fed rodents to human obesity and diabetes. Nutr Diabetes. 2014;4:e135.

2. Siervo M, et al. Effects of the Dietary Approach to Stop Hypertension (DASH) diet on cardiovascular risk factors: a systematic review and meta-analysis. Br J Nutr. 2014 [Epub ahead of print].

3. Zemel MB. Dietary pattern and hypertension: the DASH study. Dietary Approaches to Stop Hypertension. Nutr Rev. 1997;55(8):303-5.

4. Vogt TM, et al. Dietary Approaches to Stop Hypertension: rationale, design, and methods. DASH Collaborative Research Group. J Am Diet Assoc. 1999;99(8 Suppl):S12-8.

5. Nordmann AJ, et al. Effects of low-carbohydrate vs low-fat diets on weight loss and cardiovascular risk factors: a meta-analysis of randomized controlled trials. Arch Intern Med. 2006;166(3):285-93.

6. Hession M, et al. Systematic review of randomized controlled trials of low-carbohydrate vs. low-fat/low-calorie diets in the management of obesity and its comorbidities. Obes Rev. 2009;10(1):36-50.

7. Hu T, et al. Effects of low-carbohydrate diets versus low-fat diets on metabolic risk factors: a meta-analysis of randomized controlled clinical trials. Am J Epidemiol. 2012;176 Suppl 7:S44-54.

8. Bueno NB, et al. Very-low-carbohydrate ketogenic diet v. low-fat diet for long-term weight loss: a meta-analysis of randomised controlled trials. Br J Nutr. 2013;110(7):1178-87.

9. Schwingshackl L, Hoffmann G. Comparison of effects of long-term low-fat vs high-fat diets on blood lipid levels in overweight or obese patients: a systematic review and meta-analysis. J Acad Nutr Diet. 2013;113(12):1640-61.

10. Schwingshackl L, Hoffmann G. Comparison of the long-term effects of high-fat v. low-fat diet consumption on cardiometabolic risk factors in subjects with abnormal glucose metabolism: a systematic review and meta-analysis. Br J Nutr. 2014;111(12):2047-58.

11. Clifton PM, et al. Long term weight maintenance after advice to consume low carbohydrate, higher protein diets--a systematic review and meta analysis. Nutr Metab Cardiovasc Dis. 2014;24(3):224-35.

12. Liebman M. When and why carbohydrate restriction can be a viable option. Nutrition. 2014;30(7-8):748-54.




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