Saúde
O preço da proteína e o excedente energético
As políticas económicas com impacto na saúde pública sempre foram um tema do meu interesse e em que me tento manter o mais actualizado possível dentro das minhas limitações na disciplina. A obesidade é hoje um dos maiores problemas sócio-económicos e cujas implicações vão bem além dos gastos comunitários directos com os cuidados de saúde. Manifestam-se na produtividade, morbilidade e, de forma secundária, até no ecossistema. O consumo excessivo de alimentos densos em energia é provavelmente o factor determinante para a obesidade no ambiente farto actual. É necessário compreender a razão deste consumo desmedido e encontrar políticas que atenuem o seu impacto. Nas sociedades humanas modernas, a economia é um factor extra-biológico que manipula as nossas escolhas e comportamentos como nenhum outro. É provavelmente o melhor alvo de intervenção para um combate eficaz e com resultados rápidos à epidemia da obesidade. RC Brooks faz uma proposta interessante num artigo recente publicado na Obesity Reviews que vou partilhar e discutir convosco.
É mais que reconhecido pela comunidade científica que a proteína tem um elevado efeito saciante e termogénico. Como o conteúdo de proteína numa dieta moderna típica é manifestamente baixo, cerca de 10-15%, a regulação do seu consumo exerce uma grande influência no teor energético total. Também são cada vez mais as provas dos benefícios de um maior consumo de proteínas, e quantidades relativas na ordem dos 20-25% parecem mais apropriadas. Observações em animais mostram que estes possuem um apetite particular e voraz para as proteínas, e que essa característica domina o consumo energético global em dietas nutricionalmente pobres. Portanto, quando a proporção de proteína é menor do que a óptima para a saúde e composição corporal, os animais aumentam o consumo de energia para compensar a carência proteica, colocando-se num estado excedentário propício à obesidade. Tudo indica que o mesmo se passe com os humanos e uma mudança na composição da dieta para uma maior importância relativa dos hidratos de carbono (CHO) leva ao consumo exagerado de energia. Mas se assim é, num mundo de abundância seria de esperar que todos fizemos as escolhas que vão ao encontro das nossas necessidades biológicas, ou seja, aumentasse-mos naturalmente o teor proteico da dieta. É bem provável que entrem aqui aspectos artificiais das sociedades modernas para os quais a nossa biologia não está preparada, nomeadamente o factor económico.
Uma tendência geral desde a invenção da agricultura tem sido o acesso cada vez mais barato à energia provenientes dos hidratos de carbono. O trabalho escravo ou quase nas antigas colónias, desenvolvimentos mecânicos na Revolução Industrial, a produção em massa no séc. XX e melhores métodos de conservação, todos contribuíram para um decréscimo no preço e aumento da disponibilidade de alimentos ricos em hidratos de carbono. Um dos factores sociais mais fortemente associado ao excesso de peso nos países industrializados é o baixo rendimento, o que sugere um papel importantíssimo dos preços na selecção dos alimentos por parte dos grupos mais desfavorecidos. Alimentos de grande densidade energética são mais baratos por unidade de energia. Pelo contrário, os vegetais, carnes magras e frutas não só custam mais como o seu preço aumentou mais rapidamente do que qualquer outro alimento.
Nos EUA, estima-se que cada 250 kcal custem aproximadamente 0.12 EUR, mas o custo não é igual para todos os macronutrientes. A cada grama de proteína está associado um aumento do preço de um alimento em 2.30 EUR, enquanto que cada grama de CHO reduz o custo em 0.27 EUR. A gordura parece ter um efeito neutro. Quando os efeitos da proteína e gorduras no preço são considerados, os alimentos ricos em hidratos de carbono tendem a custar menos do que produtos com menor teor em CHO. Os alimentos com a melhor relação energia/preço são mais ricos em CHO e gordura e tendem para níveis reduzidos de proteína. Portanto, como as classes mais desfavorecidas fazem as suas escolhas pela ditadura do orçamento, existe uma propensão para alimentos mais calóricos e menos ricos nutricionalmente, pobres em proteínas. A importância das políticas económicas nos desequilíbrios de preços é ilustrada na afirmação de Drewnowski: “a epidemia da obesidade não é tanto uma falha dos sistemas biológicos, mas um fenómeno social e económico”. O elevado custo da proteína e o facto de a energia proveniente de CHO reduzir consideravelmente o preço dos alimentos faz com que os produtos de elevada carga glicémica sejam desproporcionalmente baratos. Além disso, estes alimentos ricos em energia não derivada de proteínas são fontes mais baratas de proteína do que produtos de elevada densidade proteica e com teor energético moderado (carnes magras, peixe, etc). Estas distorções na relação preço/energia/proteína poderão levar ao consumo de energia em excesso de forma a satisfazer o nosso apetite biológico por proteína, um macronutriente que por si promove a saciedade e uma correcta homeostase energética. Cheng e colaboradores estimaram que por cada unidade de deficit em proteína, 53 unidades de CHO e gorduras sejam consumidas em excesso.
Os custos médicos anuais nos EUA por cada obeso rondam os 1012 EUR. Brooks e colaboradores sugerem que para se obter uma redução em 380 kcal na dieta, os custos dos alimentos aumentariam 0.51 EUR/dia, o que se traduz num valor anual de 185 EUR por pessoa, muito inferior aos custos dos cuidados de saúde associados à obesidade. É provável que o combate à obesidade possa e deva também ser travado via económica, subsidiando alimentos ricos em proteína, como as carnes magras e peixe, ou taxando os produtos de elevada carga glicémica ou densidade energética, de forma a suportar esse custo associado a uma alimentação mais saudável e sustentada. Tendo em conta a instabilidade dos preços dos alimentos e a crise económica global, é de esperar que estas discrepâncias de valor entre os macronutrientes dirijam a crescente incidência de obesidade e excesso de peso.
Gostaria de ver uma análise semelhante feita em Portugal ou a nível comunitário, mas não é preciso ser um economista douto para perceber a desproporção no valor dos diferentes macronutrientes e que a proteína é muito mais dispendiosa quando não está associada a uma carga glicémica elevada. Por exemplo, eu compro peitos de frango de criação extensiva a 8 EUR/Kg. Para obter 100 g de proteína tenho de consumir cerca de 450 g de frango, o que custa 3.6 EUR e representa cerca de 520 kcal. Por outro lado, 1 Kg de arroz custa cerca de 1 EUR e, para facilitar as contas arredondamos por excesso, tem cerca de 10% (w/w) de proteína, logo, teria de comer o pacote inteiro para atingir as 100 g, o que mesmo assim ficaria 3.6 vezes mais barato do que comer frango. Fica claramente mais económico obter proteína a partir do arroz. Por outro lado, enquanto que a proteína no frango representa cerca de 70% da energia, no arroz tem uma importância inferior a 10%. Mas vamos a outro exemplo. O queijo flamengo custa cerca de 8 EUR/Kg e tem 26 g de proteína por cada 100 g de produto. Em termos de preço por 100 g de proteína, gastaria cerca de 3 EUR, 0.60 EUR menos do que com os peitos de frango. Mas em termos energéticos, a proteína representa cerca de 35% das calorias do queijo flamengo contra os 70% do frango. Enquanto que com o último estaria a ingerir perto de 500 kcal, com o queijo seriam 1200 kcal.
Um outro aspecto importante quando comparamos preços de alimentos é o custo por unidade de energia. O peito de frango custaria 0.67 EUR/100 kcal e o queijo apenas 0.25 EUR/100 kcal. Mesmo tendo em conta a menor proporção de proteína no queijo (35% da energia), cada 100 kcal de proteína custariam 0.70 EUR, contra 0.95 EUR do frango. Se considerar-mos o arroz, a diferença é ainda mais evidente já que cada 100 kcal custam apenas 0.03 EUR e 100 kcal de proteína ficariam por menos de 0.30 EUR. Portanto, a proteína é bem mais cara em alimentos com maior teor proteico em peso seco e com menor densidade energética, e a carga glicémica diminui desproporcionalmente o preço da proteína. Na verdade, o preço por kcal é uma medida muito simplista, mas que tem validade em estudos económicos e explica em grande parte as escolhas alimentares, principalmente naqueles com orçamentos mais restritos. Quando um Big Mac custa o mesmo que meio Kg de espinafres e tem 7-8 vezes mais calorias, qual seria a sua opção se tivesse um orçamento diário para alimentação de apenas 5 EUR? Claro que ninguém come 500 g de espinafres mas e entre 1 Cheeseburger e um peito de frango minúsculo ou 250 g de morangos? Entre 1 Kg de arroz, que alimenta uma família inteira, e um bife de peru? O mais preocupante é que esta disparidade de preços está a aumentar em paralelo ao aumento da obesidade.
Não escondo que sou a favor da aplicação de taxas diferenciais aos alimentos de acordo com o seu impacto na saúde humana. Sei que é uma questão muito controversa e que a democracia portuguesa não é madura o suficiente para compreender que não se trata de uma violação do seu direito à liberdade de escolha. Em países do norte da Europa já foi aplicado e sem grande contestação social. Esta também não é de todo a altura certa para falar em aumentos de impostos já que tem sido o nosso quotidiano nos últimos tempos. Talvez nem fosse necessário se os subsídios à produção de cereais e lacticínios acabassem e o valor de mercado começasse a reflectir os custos de produção. Poucos têm essa ideia, mas os governos pagam para que alguns produtos sejam mantidos a um preço reduzido. O caso mais flagrante é provavelmente o milho, não só usado para consumo humano directo como também para engordar animais em produção intensiva.
As verbas angariadas do eventual imposto ou da poupança nos subsídios aos desequilíbrios alimentares e obesidade (no fundo é o que são) poderia ser usado para atenuar a diferença de preços de acordo com o valor nutricional e/ou promover uma política séria de combate à obesidade que aposte na educação alimentar. Esta última proposta seria a ideal mas um pouco utópica e impossível de apresentar resultados a curto prazo. Penso que é urgente adoptar políticas económicas mais agressivas e que aí está a resposta mais eficaz e rápida à epidemia da obesidade. Embora a um nível micro, individual, uma alteração de preço na ordem dos 10-15% por exemplo não pareça fazer grande diferença, a um nível macro, populacional, teria um grande impacto no consumo de bens de grande elasticidade, os dispensáveis, como a junk food e refrigerantes. Atacando este grupo de alimentos poderíamos contrair a diferença entre o preço da proteína e outros macronutrientes, e diminuir o efeito da carga glicémica no preço final. Se a taxação servisse para subsidiar alimentos mais ricos nutricionalmente e saudáveis, o impacto no consumidor seria nulo já que ficaria a ganhar por fazer as melhores escolhas. Num país onde a saúde é pública, os gastos são do interesse comum e as opções alimentares acabam por ter um elevado peso no orçamento de Estado que todos somos obrigados a pagar. Atribuir um pouco de responsabilidade a cada um de nós parece-me benéfico e até necessário numa sociedade muito atenta aos seus direitos mas pouco consciente dos seus deveres. Mas mesmo que se optasse pela via de suportar directamente a subsidiação de certos alimentos, é bem provável que, tal como Brooks mostrou para os EUA, a redução dos gastos no Sistema Nacional de Saúde fosse mais que suficiente para cobrir essa despesa extra do Estado.
Mas não é minha intenção voltar a abordar este tema, já exposto por mim neste blogue. Dificilmente seria aceite pela sociedade portuguesa e não vejo tão cedo um governo forte, capaz de fazer frente tanto à indústria como à opinião pública. Apenas quis explorar e lançar a debate a hipótese de as necessidades biológicas de proteína serem a força motriz para o consumo energético, uma teoria cada vez mais sólida à medida que se vão desvendando os mecanismos de homeostase energética. Assim sendo, uma vez que os constrangimentos económicos são determinantes nas escolhas alimentares nas sociedades modernas, torna-se necessário adoptar políticas que diminuam a disparidade de preços entre macronutrientes e valor nutritivo, de forma a favorecer e gratificar os melhores comportamentos alimentares. Todos nós, individualmente e como comunidade, beneficiaríamos com isso. Que lhe parece?
Sérgio Veloso[email protected]Tweet
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