Proteína: quanto é demais?
Saúde

Proteína: quanto é demais?



Uma das questões mais frequentes em nutrição desportiva é quanta proteína deve ser consumida diariamente. As respostas variam muito com as crenças de quem as dá, mas muito poucos se baseiam em dados concretos. A recomendação oficial para um adulto situa-se nas 0.8 g/kg de peso corporal, um valor inadequado à maioria da população e que urge em ser revisto. Ele baseia-se no uso exclusivo dos aminoácidos fornecidos pela dieta para a síntese proteica em repouso, renegando as mais recentes evidências de um papel metabólico adicional, até mesmo como fonte de energia hepática preferencial. Mas, quanta proteína é demais? Existe um tecto máximo recomendável? Na verdade, existe um limite na capacidade de o corpo metabolizar a proteína e acima do qual podem ocorrer reacções adversas no organismo.

Uma noção comum entre os adeptos das dietas hiperproteicas é que o excedente às necessidades anabólicas, de síntese, será catabolizado e utilizado normalmente como fonte de energia através da gluconeogénese ou cetogénese. Infelizmente, não é bem assim e as limitações resumem-se em dois níveis principais: a taxa de absorção dos aminoácidos no tracto gastrointestinal e na capacidade hepática para os desaminar e excretar o excesso de azoto.

A amónia é tóxica e o metabolismo dos aminoácidos tem de estar acoplado a uma via que assegure a manutenção de baixos níveis de amónia, nomeadamente o ciclo da ureia que ocorre no fígado. No entanto, a capacidade de conversão da amónia que deriva do catabolismo proteico em ureia é limitada. Rudman estabeleceu a taxa máxima de excreção em 55 mg de N da ureia.h-1.Kg-0.75 e a taxa máxima de síntese no fígado em 65 mg de N da ureia.h-1.Kg-0.75. Descodificando estes valores, um indivíduo de 70 Kg seria capaz de catabolizar 236 g de proteína por dia, o que, adicionado ao requerimento para síntese proteica, se traduz num consumo máximo tolerado de 292 g, cerca de 4 g/Kg de peso corporal. Estes valores são claramente excessivos e não existe qualquer razão prática para os seguir. Na verdade, será prudente utilizar o valor inferior da taxa de síntese de ureia para compensar as variações inter-individuais. Assim sendo, uma pessoa de 70 Kg poderia tolerar 256 g/dia, um valor mesmo assim sem utilidade razoável e que deve ser considerado como um máximo teórico absoluto. Abaixo deste nível não seria de esperar qualquer reacção adversa à proteína alimentar. Convém no entanto salientar que o estudo de Rutman, o único do género, é antigo e limitado a uma amostra muito pequena e heterogénea.

Os perigos de um consumo excessivo de proteína são reais e estão até bem documentados historicamente. O consumo exclusivo de carnes magras por parte dos antigos exploradores Americanos originava uma série de sintomas a que se chamou “rabbit starvation syndrome”, um nome inspirado no facto de o coelho ser um dos alimentos mais comuns, uma carne muito pobre em gordura. Os sintomas incluíam náuseas e diarreia, podendo levar à morte em menos de um mês. Este síndrome resulta da incapacidade do fígado em ajustar a produção de ureia ao consumo massivo de azoto. Um caso famoso foi o de Vilhjalmur Stefansson, um explorador que após contacto com esquimós Inut, dependentes em exclusivo de alimentos de origem animal, sujeitou-se a uma experiência semelhante num hospital de New York. Após 3 dias de dieta, Stefansson adoeceu com um consumo proteico na ordem dos 264 g/d, 45% do teor energético da sua dieta. À medida que a proteína foi sendo reduzida e substituída por gordura, os sintomas desapareceram de imediato. Não se trata obviamente de um estudo generalizável mas dá-nos uma ideia do que a biologia humana é capaz de suportar.

Um outro aspecto não menos importante é a taxa máxima de absorção no intestino. Infelizmente, existem muito poucos estudos a este respeito, e muito menos são os que estabelecem valores para alimentos comuns como a carne ou o peixe. Existe no entanto bibliografia quanto às taxas de absorção de fontes específicas como a whey, caseína, leite, ovo, ervilha e soja. Para mais, os estudos conhecidos são difíceis de interpretar já que não fornecem dados que permitam extrapolar um valor médio por massa corporal. São aproximações grosseiras mas que não deixam de representar um bom ponto de partida, quantificado em g/h. Os valores estimados são os seguintes:

Proteína do leite – digestibilidade na ordem dos 95%, a uma taxa média de 3.5 g/h durante um período de 8h.

Proteína da ervilha – digestibilidade de 95% a uma taxa de absorção média de 3.5 g/h, semelhante ao leite.

Proteína do ovo (1,2)– digestibilidade total de 90.9% para o ovo cozinhado e 51.3% para o cru, com taxas médias de absorção de 2.9 g/h e 1.4 g/h respectivamente.

Proteína isolada de soja – digestibilidade de 90% a uma taxa de 4 g/h.

Caseína (1,2) – taxa média de absorção na ordem das 6 g/h.

Whey (1,2) – taxa de absorção média entre de 8-10 g/h, o valor mais alto verificado até hoje.

Antes de avançar para uma interpretação destes dados e lhes dar um sentido prático, acho relevante mencionar mais sintomas de um consumo excessivo de proteína. Já falei nas náuseas e diarreia, mas existem muitos mais. Entre eles, está a fadiga, tensão arterial baixa, hipotensão ortostática (postural), fome constante, acidémia e hiperinsulinémia. Desconfio que muitos devam ter franzido o sobrolho com este último. Tem sido uma luta minha passar a ideia de que a glicose não é o único nutriente capaz de estimular a secreção de insulina. Há mais de 30 anos que se sabe que a ingestão de proteínas como a caseína e carne de vaca, por exemplo, podem aumentar substancialmente os níveis plasmáticos de insulina. Além disso, a adição de proteína a uma dose de glicose amplifica consideravelmente a resposta insulínica, evidenciando um efeito inulinotrópico acentuado dos aminoácidos. Na verdade, a ingestão de 250 kcal de proteína de peixe, o equivalente a pouco mais de 300 g de alimento, provoca um pico de insulina mais elevado do que 250 kcal de massa. A explicação para este fenómeno é complexa e está relacionada com um aumento da gluconeogénese, com um estímulo directo à produção de insulina e até com uma inibição da sinalização insulínica promovida por certos aminoácidos. Talvez fale um pouco mais deste processo no futuro.

Mas o efeito da proteína na insulinémia não é assim tão linear. Antes de qualquer aumento ser detectado, parece necessário atingir um certo limiar ainda não quantificado. Pequenas doses de whey administradas em intervalos de 20 min, a uma taxa de 7 g/h, provocam uma aminoacidémia ligeira e nenhum aumento de insulina descortinável. Por outro lado, doses de 30 g resultam em aumentos significativos da insulina plasmática. Um outro factor a ter em conta é a própria composição da proteína já que os aminoácidos têm um efeito diferencial na insulinémia, mais acentuado com a arginina, lisina, fenilalanina, alanina e leucina. Esta temática ultrapassa o âmbito do artigo mas é relevante para justificar um tecto máximo de ingestão proteica.

Quando discutimos doses recomendadas de proteína deparamo-nos com a ambiguidade da sua definição. Ela pode ser estabelecida em quantidade total (g/dia), em percentagem do teor energético diário ou em quantidade por unidade de peso corporal (g/Kg). Se um indivíduo consumir 30% da energia em proteína numa dieta de 2000 kcal, pode parecer muito mas representa apenas 150 g, um valor perfeitamente tolerável e igual a um individuo que consuma 40% em proteína numa dieta de 1500 kcal. Para uma pessoa de 75 Kg, estamos a falar de 2 g/Kg, bem dentro do considerado seguro.

Tendo em consideração todos estes factores, penso que estamos em condições de estabelecer um limite aceitável de proteína que permite satisfazer as necessidades basais do organismo, maximizar o desenvolvimento muscular e inibir a sua degradação. Considerando uma taxa de absorção média na ordem das 6-7 g/h, teríamos uma capacidade absortiva na ordem das 150 g/dia. No entanto, convém frisar que os dados não são de grande fiabilidade e obtidos em condições artificiais. Se falarmos em percentagem de energia, os valores serão mais ambíguos mas podemos ter em conta a proporção dos outros macronutrientes. Sabendo que um elevado consumo de proteína aumenta consideravelmente a carga ácida da dieta, um factor de stress renal e homeostático, é necessário compensar com um consumo substancial de verduras e frutas com um efeito alcalinizante. Como o percentual de proteína em relação aos hidratos de carbono e gorduras parece importante para a sintomática relacionada à hiperaminoacidémia, parece-me aceitável um consumo de até 35% do valor energético total da dieta. Numa dieta de 2500 kcal estamos a falar de 220 g/dia ou 3 g/kg de peso para um indivíduo de 75 Kg, um valor que, embora pareça seguro, está acima do que se pensa ser suficiente. Além disso, o efeito reconhecido à proteína na hiperinsulinémia faz com que o número de refeições diárias limite a quantidade total recomendável dado o aparente limiar. Portanto, julgo que antes de estabelecer um valor é necessário olhar para o enquadramento e objectivo da dieta. Um indivíduo muito pesado deve optar por um valor global total ou percentagem de energia. Alguém mais leve ou numa dieta hipocalórica pode perfeitamente adoptar um consumo de 2-2.5 g/Kg. Convém um mínimo de bom senso e quando se cita um estudo a sugerir um consumo de 2.5 g/Kg, por exemplo, fá-lo para um indivíduo que representa a média da população, entre os 70 e os 80 Kg, o equivalente a cerca de 200 g/dia.

Julgo ter ficado claro que existem limites metabólicos para a quantidade de proteína ingerida que, quando excedidos, resultam em sintomas que vão desde o mero desconforto ao risco de vida. No entanto, estes tectos máximos toleráveis são bastante altos e existe uma grande margem que permite um consumo ideal para qualquer objectivo. Para concretizar numa recomendação prática baseada em 6-8 refeições diárias, o que parece ser mais comum, sugiro um consumo máximo de 2-2.5 g/Kg, mas que nunca ultrapasse as 250 g de proteína por dia e  35% do total energético da dieta, sempre tamponizado por um consumo substancial de verduras e frutas ricas em catiões de efeito alcalinizante.


Nota: apercebi-me que esta sugestão gerou alguma confusão na comunidade culturista, com uma massa corporal acima da média. Como tal, deixo aqui calculados alguns valores MÁXIMOS, tendo em conta a capacidade de produção de ureia e as necessidades proteicas para housekeeping:


70 Kg - 256 g
80 Kg - 285 g
90 Kg - 313 g
100 Kg - 341 g
110 Kg - 368 g


Convém lembrar que, pelas razões apontadas no texto, o consumo de proteína não deve exceder os 35% da energia. Logo, para um indivíduo de 110 Kg consumir o valor teórico máximo de proteína metabolizável (não necessariamente canalizada para o incremento de massa muscular), teria de obter 4200 kcal/dia, normal para um atleta competitivo mas não generalizável à população. Estes indivíduos são a excepção e não a regra.

Sérgio Veloso





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