Saúde
Os problemas dos diagnósticos funcionais baseados em hormonas
Como qualquer aspecto fisiológico, a nossa composição corporal está relacionada com uma interacção dinâmica entre factores intrínsecos, como a genética em primeira instância, e extrínsecos, onde incluímos a alimentação, estilo de vida, e todos os aspectos que condicionam a forma como esses genes são expressos - epigenética. O equilíbrio hormonal faz a ponte entre todos estes condicionantes e a manifestação fisiológica, ou patológica/disfuncional. Normalmente não é a causa do desequilíbrio, mas a expressão do problema e intermediário das suas consequências. No entanto, a disfunção pode surgir não por alterações aos padrões de secreção dessas hormonas, mas na resistência aos seus efeitos a nível celular, ou por favorecimento de vias sinalizadores alternativas, o que nem sempre é passível de diagnóstico analítico. E na verdade, ele pode até induzir em erro.
É muito redutor que quando falamos em hormonas nos centremos nos valores absolutos, que pouco nos dizem sobre o real efeito a nível celular, mediado pela expressão dos respectivos receptores hormonais. Por exemplo, o efeito lipolítico da testosterona é reconhecido, e em parte associado ao antagonismo do cortisol. Os androgénios podem reduzir a expressão de receptores de glucocorticoides, mas ao mesmo tempo apresentam afinidade para os mesmos. No entanto, também apresentam afinidade para os receptores de mineralocorticoides (MR), que, para além do seu papel no controlo electrolítico, é-lhe hoje atribuída uma função lipogénica potente. Em suma, a testosterona pode fazer perder gordura, em particular abdominal, mas também ganhar gordura e reter água. Tudo depende da expressão dos receptores e sua afinidade, e isto sim caracteriza a acção de uma hormona no contexto "personalizado". Existe uma grande variabilidade inter-individual na expressão e função destes receptores hormonais, aumentando o número de melodias que podemos tocar com as mesmas notas.
No "dark side" do fitness esta questão é constantemente posta à prova entre os utilizadores de esteróides anabolizantes, muitas vezes iludidos com os efeitos descritos na generalidade, e que por vezes não se verificam no individual. Concretamente, para alguns indivíduos todos os esteróides podem causar retenção de líquidos pela sua afinidade com os MR e receptores de progesterona, e nada tem a ver com a conversão em estrogénios. E até aumentar a massa gorda pelos efeitos descritos, com respostas diferenciadas em grau entre as substâncias. Tudo depende dos receptores disponíveis num determinado tecido, neste caso adiposo, e isso varia entre indivíduos. Não é a dieta, não é falta de cardio. É apenas o corpo a reponder como sabe, e ensinar-lhe outra coisa requer muita perícia.
Um outro exemplo paradigmático que só agora começa a ser descortinado é o do cortisol. A medicina e nutrição funcional aceitam quase sem contestação que o stress crónico, marcado por uma exposição elevada ao cortisol, leva ao aumento da massa gorda, e em particular na região abdominal. No entanto, esta hipótese tem algumas incongruências que não são muitas vezes explicadas. Tendo o cortisol um efeito lipolítico de forma aguda, como passa a lipogénico de forma crónica? Talvez a resposta esteja nos receptores e não no cortisol em si.
Sabe-se que, em interação com o cortisol, o factor com maior correlação não é o nível absoluto mas sim a ausência de variação ao longo do dia. Por outras palavras, não são picos de cortisol elevados, mesmo descontextualizados do ritmo circadiano, mas sim exposição a níveis mais ou menos constantes ao longo do dia, e dos anos, o que em parte define stress crónico. Quase todas as hormonas do nosso organismo sofrem de um mecanismo de retroacção inibitório. A exposição crónica leva a uma resistência à sua acção por parte das células, mediada por alterações a nível dos receptores e intermediários de sinalização. A elevada exposição a catecolaminas, ou simpatomiméticos, leva a uma redução da densidade de receptores beta-adrenérgicos na membrana celular. A exposição crónica à insulina bloqueia por fosforilação inibitória o substracto do receptor insulínico (IRS) via mTOR. E com o cortisol parece acontecer algo semelhante.
Existem várias isoformas dos receptores de glucocorticoides (cortisol por exemplo), onde os mais importantes são o GR-alfa, e GR-beta, em que o último antagoniza a acção do primeiro, lipolítica de forma aguda. Em modelos de adipogénese verifica-se um aumento da predominância dos GR-beta, e consequentemente menor acção dos glucocorticoides sobre os alfa. Além disso, na doença de Cushing e em terapia com glucocorticoides verifica-se um aumento da concentração de GR mas com diminuição da sua afinidade para os corticóides, muito provavelmente por um aumento das isoformas beta. Tendo também em consideração que, em muitos casos, a quantidade de receptores de mineralocorticóides (MR) é superior à de GR no tecido adiposo, podemos inferir que parte do efeito adipogénico é mediado pelos MR, tal como a elevada retenção de líquidos evidenciada. Em mulheres caucasianas, por exemplo, sabe-se que a quantidade de GR-alfa é menor do que os beta na região abdominal, com uma esperada grande variabilidade inter-individual, o que condiciona a maior propensão para aumento de massa gorda nessa zona.
Um problema de base nesta abordagem realmente funcional é que não temos forma expedita de medir receptores, e o primeiro impulso é ignorar o que não se pode quantificar - a chamada falácia de McNamara. O que não se pode medir de uma forma simples, não existe. Ora, nada poderá ser mais errado e perigoso do que ignorar factos por ausência de uma métrica definida. O foco incide apenas sobre as concentrações sanguíneas dos mediadores, sem nenhum informação sobre os efectores que traduzem essa mensagem num efeito.
Longe de mim querer insinuar que é inútil traçar um perfil hormonal bioquímico, seja com o objectivo de optimizar a composição corporal, ou para que objectivo for. O que afirmo é que não se pode dissociar esse perfil, baseado em padrões externos, das manifestações evidenciadas na pessoa em causa. Níveis normais de testosterona não significam que a testosterona esteja a exercer a sua acção de forma "normal". Níveis normais de T3 não significam que a T3 esteja a actuar com "normalidade".
Esta é uma reflexão sem grande importância e utilidade para a generalidade das pessoas, mas que todos os profissionais de saúde nesta área deveriam fazer. Em particular aqueles que, ao iniciar por um caminho tão enriquecedor como o "funcional", que abre portas a uma visão abrangente e holística da nossa saúde, caem facilmente na sua própria armadilha. Numa personalização despersonalizada, com base em relações hormonais que não refletem um fenótipo de forma directa, mas apenas intermediária de uma mensagem que pode ser interpretada de várias formas nas nossas células. Os níveis hormonais nada nos dizem quando dissociados dos sintomas, estes sim manifestações reais de um problema. Um boletim de análises clínicas é uma folha em branco quando não se conhece profundamente o paciente.
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