Saúde
Por que falar de raça e racismo em Campos?
Luciane Soares da Silva*
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Luciane Soares da Silva |
Como defendia Max Weber, é da natureza científica dizer verdades que nem sempre agradam aos grupos sociais que as escutam. Temas como escravidão e racismo no Brasil ratificam a afirmação de Weber. O desconforto em tratar do tema em nosso país foi definido por Florestan Fernandes como “preconceito de ter preconceito”. E se em frente às câmeras a maioria das pessoas afirma que só existe “uma raça, a humana”, no cotidiano percebemos a reprodução de desigualdades com base na cor. Esta percepção sobre a cor foi explicada por Oracy Nogueira (em oposição aos Estados Unidos) como “preconceito de marca”. Ou seja, aqui, o fenótipo é levado em conta mais do que a origem. O que isto nos diz? Que a tese de “escape do mulato” teria vigorado no Brasil. Por estas razões o tema permanece central para pesquisadores de todas as áreas de ciências humanas, mesmo que a biologia tenha provado que não existem “raças” no sentido defendido por cientistas como Nina Rodrigues, influenciado por Lombroso, a quem entusiasticamente dedica o livro ‘
As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil’ em 1894. Esta obra, essencial para quem estuda raça no Brasil, advogava que, em função de sua inferioridade racial, os negros não teriam discernimento suficiente para compreensão de questões morais como “bem/mal” e que, portanto, não poderiam responder penalmente da mesma forma que os grupos arianos, racialmente mais evoluídos. Ainda em tempo: Nina Rodrigues era médico, “mulato” nas classificações do Brasil e ogã do terreiro do Gantois na Bahia.
Já se passaram 118 anos do lançamento deste livro e percebemos a permanência da seletividade do Estado no quesito “cor" dos presos e a manutenção de indicadores sociais desfavoráveis em relação aos não-brancos, principalmente de renda e educação. A teoria de mestiçagem, raiz da fundação da nação brasileira, não forneceu a este grupo condições de gozar de uma igualdade que transcendesse o “meramente formal” perante os demais. Muitos que hoje são pesquisadores leram nos livros de história que colonizadores foram os portugueses, alemães, italianos. O Brasil prestou belas homenagens ao centenário da Imigração Japonesa. Há sim, em nosso país uma valoração explicita quando aos grupos desejáveis para o progresso da nação.
Já no século XX, uma das saídas implementadas pelo Estado brasileiro seria promulgada na Constituição de 1934, na qual acrescentava-se ao item de igualdade o seguinte termo: “todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios ou distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideia política” Mas esta mesma Constituição definiu, em seu artigo 138, que é dever da União, dos Estados e das municipalidades a promoção de educação eugênica, que “envolve o controle e em alguns casos a eliminação de certos tipos biológicos a fim de se alcançar um ideal de homogeneidade física ou racial”. O elogio à mestiçagem no campo cultural e sociológico com Gilberto Freyre, os modernistas, a construção do samba como signo máximo de nosso espírito “cordial” não alteraram as condições materiais de vida dos negros, mulatos, pardos, morenos, mestiços.
Campos dos Goytacazes tem sua história marcada pela presença das usinas e, portanto, da mão de obra escrava. Os descendentes destes escravos permanecem na cidade, em bairros periféricos, em empregos mal remunerados e sem o capital educacional necessário para competição no atual mercado, que exige uma qualificação não fornecida nos bancos escolares. Pesquisar a atual dinâmica social da cidade com base na cor é essencial para entender as contradições de uma cidade que acredita no boom do petróleo como saída para a estagnação econômica. As entrevistas feitas em nossa pesquisa “
Cidades do Petróleo, crescimento urbano e futuro do norte Fluminense” sobre mobilidade e qualificação profissional demonstram que a raça é, sim, uma variável importante para as formas de engajamento dos cidadãos no processo de qualificação. E nas expectativas de inserção no mercado de trabalho.
Pode ser uma verdade pouco agradável, pode ser que entre os entrevistados o tema da cor e do passado da cidade tenda a ser evitado. Mas o que nos qualifica como pesquisadores é de fato o exercício da dúvida; o que diferencia nosso trabalho é a demonstração de como certas formas de interação reproduzem desigualdade. Seria um grande retrocesso para a Universidade furtar-se a este debate no ano em que uma estudante universitária angolana, Zulmira de Sousa, é morta a tiros em uma tentativa de chacina, na cidade de São Paulo.
* Professora do Laboratório de Estudo da Sociedade Civil e do Estado (LESCE) do Centro de Ciências do Homem (CCH) da UENF.
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