Saúde
Porque muitos falham a entrar em cetose
A palavra “cetogénico” passou a fazer parte do vocabulário corrente dos entusiastas do fitness. Muitas pessoas encontraram nas dietas cetogénicas uma forma eficaz de melhorar a sua composição corporal, embora poucos sejam capazes de explicar o que realmente está a acontecer no organismo. Na verdade, muitos nunca chegam a atingir os níveis de corpos cetónicos considerados ideais para um verdadeiro estado “cetogénico”. Embora a variabilidade inter-individual seja um factor importante, muitas vezes encontro um erro comum que compromete grandemente a cetose: a ingestão de demasiada proteína.
O estado “cetótico” é definido arbitrariamente por uma concentração de ácido acetoacético (AcAc) e beta-hidroxibutírico superior a 1 mmol/L e 2 mmol-L respectivamente, o que é normalmente atingido em 2-3 dias de jejum. Os níveis basais dos corpos cetónicos no plasma são muito reduzidos, da ordem dos 0.1 mmol/L em pessoas saudáveis. O método mais comum e expedito para quantificar o AcAc ou acetona é a reacção com a nitroprussida em tiras de teste para a urina que gera um complexo facilmente detectável. Embora existam alguns factores que influenciam o resultado, como a exposição ao ar das tiras, baixo pH da urina ou substâncias com grupos sulfidrilo (como a N-acetil-cisteína, NAC), esta metodologia é bastante robusta e representa uma óptima aproximação aos valores reais.
Mas porque razão a cetoacidose severa é tão comum em diabéticos não-controlados e muito rara em pessoas saudáveis, mesmo após um jejum prolongado? Nestes, os níveis raramente excedem os 6 mmol/L enquanto que na diabetes podem chegar aos 12-14 mmol/L. Esta questão não é ainda totalmente clara mas julga-se que um aumento muito acentuado da concentração de corpos cetónicos iniba a sua produção. A infusão de corpos cetónicos parece estimular ligeiramente a produção de insulina, mas a níveis suficientes para inibir o metabolismo cetogénico. Como os diabéticos são incapazes de produzir insulina, não possuem este mecanismo auto-regulador. Mas uma característica que distingue todas as formas de cetoacidose severa da benigna, induzida pela privação alimentar, é o chamado hipermetabolismo. Não é um conceito simples de explicar mas vou dar o meu melhor. A diabetes é caracterizada por níveis elevados de glucagina e um aumento relativo da secreção de norepinefrina (ou noradrenalina), o que estimula a gluconeogénese e a taxa metabólica. Pelo contrário, o jejum é geralmente um estado hipometabólico. O stress metabólico aumenta o fluxo de ácidos gordos livres e percursores glucogénicos para o fígado, o que, aliado a um metabolismo acelerado pela norepinefrina, resulta num aumento do consumo energético e capacidade cetogénica no órgão. Em pessoas não-diabéticas, um aumento da glicemia induzido por stress, com uma elevação das catecolaminas, iria estimular a libertação de insulina de forma a inibir a lipólise e gluconeogénese, bloqueando assim a cetogénese. Portanto, é a incapacidade de resposta ao aumento da glicemia que determina o controlo dos níveis de corpos cetónicos no sangue. A título de curiosidade, antes da insulina terapêutica estar disponível, o único tratamento que aumentava significativamente a esperança de vida dos diabéticos era uma dieta reduzida em glicose.
Agora que vimos como o corpo controla a cetogénese em pessoas saudáveis, mesmo após um jejum prolongado, torna-se evidente o quanto uma dieta tem de ser rigorosa para que se atinja um estado de cetose, especialmente no que diz respeito à glicose e seus precursores. Klein [1] estudou o efeito da restrição de hidratos de carbono e valor energético da dieta na resposta metabólica ao jejum. A infusão intravenosa isocalórica de ácidos gordos não atenua a produção de corpos cetónicos. Volek demonstrou que uma dieta isoenergética baixa em hidratos de carbono (43g/dia) resulta em níveis elevados de AcAc na urina [2] e a infusão hipocalórica de glicose (250kcal/dia) reduz 6 vezes o aumento de cetonas verificado num jejum de 4 dias [3]. Estes dados indicam claramente que a restrição dos hidratos de carbono é o factor determinante na cetogénese.
Mas na verdade, uma dieta baixa em hidratos de carbono não é necessariamente cetogénica e aqui reside o problema das dietas vocacionadas para o culturismo e fitness. Ainda em 1928, Heinbecker [4] verificou que nos Esquimós de Baffin a cetonúria era mínima, mesmo subsistindo com uma dieta exclusivamente à base de foca, rica em gordura e proteína. A explicação óbvia é que a glicose derivada da proteína alimentar era suficiente para prevenir a cetose, o que de facto veio a ser verificado mais tarde. Em pessoas com dietas muito pobres em hidratos de carbono, a cetose varia inversamente com a quantidade de proteína consumida. Isto ocorre porque até 60% dos aminoácidos presentes nos alimentos são gluconeogénicos [5] e por cada 2g de proteína consumida, 1-1.2g é potencialmente convertida em glicose. A noção, correcta diga-se, de que a proteína é essencial para o incremento e manutenção da massa magra leva muitos atletas a consumir quantidades elevadas de proteína que, por mais moderadas que possam parecer, podem inibir consideravelmente a cetogénese. A título de exemplo, de 100g de proteína podem ser derivadas 57g de glicose [5], um valor suficiente para atenuar a produção de corpos cetónicos em diversos ensaios. Uma fórmula eficaz utilizada em quadros clínicos é um consumo de gordura que excede o dobro dos hidratos de carbono mais metade da proteína [6], por exemplo, 300g de gordura, 50g de hidratos de carbono e 100g de proteína. Tendo isto em conta, é transparente a razão porque muitos dos que utilizam as dietas cetogénicas para fins estéticos falham em atingir a cetonúria ideal: demasiada proteína.
Para piorar as coisas, alguns caem no erro de suplementar a dieta com glutamina de forma a beneficiar do papel anti-catabólico que lhe é atribuído (embora duvidoso deixam-me dizer). A glutamina é um aminoácido gluconeogénico que em condições de baixo nível de insulina eleva consideravelmente a produção de glicose no fígado e rim. A concentração plasmática de glutamina relaciona-se de forma inversa com a glucagina, uma hormona que estimula a síntese de novo de glicose. Isto acontece porque a glutamina é preferencialmente mobilizada para a gluconeogénese [7]. A suplementação, aliada a uma dieta consideravelmente rica em proteína, pode ser, e geralmente é, um factor limitante para o sucesso dos regimes cetogénicos.
Assim sendo, caso pretenda tirar partido desse pretenso efeito metabólico das dietas cetogénicas há que sacrificar no consumo tanto de hidratos de carbono como de proteínas e aminoácidos. Devido ao controlo hormonal apertado da cetogénese, é aconselhável que os níveis de cetonas na urina sejam testados de forma a certificar de que estão dentro dos valores ideais. Caso contrário, não é mais do que uma dieta low-carb. Eu não sou apologista das dietas cetogénicas mas, como sabem, defendo um consumo moderado e com um “timming” de hidratos de carbono. Mesmo não entrando em cetose, é natural que alguns efeitos positivos surjam devido à redução drástica da carga glicémica global. Mas se acredita que as dietas cetogénicas são a solução ou “o segredo”, ou se já falhou neste objectivo, fica avisado: a proteína é o principal factor limitante em atletas.
Sérgio Veloso (Jekyll)
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Referências
[1] Klein S e Wolf RR. (1992). Carbohydrate restriction regulates the adaptive response to fasting. Am J Physiol. 262:E631.
[2] Volek JS et al. (2003). An isoenergetic very low carbohydrate diet improves serum HDL cholesterol and triacylglycerol concentrations, the total cholesterol to HDL ratio and post-prandial lipemic responses compared with a low fat diet in normal weight, normolipemic women. J Nutr. 133:2756.
[3] Klein S et al. (1990). Importance of blood glucose concentration in regulating lipolysis during fasting in humans. Am J Clin Nutr. 258:E32.
[4] Heinbecker P. (1928). Studies on the metabolism of Eskimos. J Biol Chem. 80:461.
[5] Jungas RL, et al. (1992). Quantitative analysis of aminoacid oxidation and related gluconeogenesis in humans. Physiol Rev. 72:419.
[6] Stock AL e Yudkin J. (1970). Nutrient intake of subjects on low carbohydrate diet used in treatment of obesity. Am J Clin Nutr. 23:948.
[7] Gerish JE, et al. (2000). Hormonal control of renal and systemic glutamine metabolism. J Nutr. 130:995S.
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