Saúde
Glutamina: suplementar ou não? Eis a questão...
Um dos suplementos alimentares de maior popularidade entre os atletas é a L-glutamina, um aminoácido não-essencial sintetizado em vários tecidos corporais como o músculo, fígado e tecido adiposo. Ao analisarmos as várias opiniões de peritos (e menos peritos), constatamos que a controvérsia é grande. Uns defendem a sua utilização, outros dizem que é totalmente inútil. Ora, como em quase tudo na vida, a verdade parece oscilar entre as duas posições extremadas. Tudo depende do fim que se lhe quer dar e do desporto em questão.
Nos últimos tempos, o blogue tem-se afastado um pouco da minha segunda paixão por assim dizer. A nutrição desportiva e suplementação. Com este pequeno artigo sobre a glutamina pretendo reavivar um pouco essa vertente do
site.
Apesar de a L-glutamina (Gln) não ser um aminoácido essencial, a necessidade de um aporte exógeno é condicional. Quer isto dizer que, determinadas situações, como após um trauma, infecção ou exercício vigoroso e prolongado, os níveis de glutamina diminuem drasticamente e a síntese endógena não acompanha as necessidades orgânicas. Torna-se necessário ingeri-la através da dieta.
Já passaram 30 anos desde que Ardawi verificou que a glutamina era um combustível muito importante para algumas células do sistema imunitário, nomeadamente os linfócitos e macrófagos. Segundo a equipa, estas células utilizam a glutamina a uma taxa igual ou superior à glicose. Em adição ao seu papel energético, este aminoácido providencia azoto para a síntese de purinas e pirimidinas, nucleótidos necessários para a síntese de DNA e RNA na proliferação das células imunes, um processo essencial na defesa do organismo a agentes agressores.
A glutamina é o principal aminoácido libertado do músculo-esquelético durante privações alimentares curtas. A sua concentração muscular ronda os 20 mmol/L, muito superior à verificada no plasma, de apenas 0.6 mmol/L. Em condições severas de caquexia existe uma redução substancial de glutamina no músculo que pode chegar aos 80%.
Numa situação de stress, como o exercício físico por exemplo, o aumento do cortisol promove a degradação das proteínas musculares e um aumento da libertação de glutamina para o sangue. Embora vários tecidos possam sintetizar e libertar glutamina, o músculo-esquelético parece ser a fonte de maior relevo. Cerca de 9g são libertadas todos os dias do músculo para a circulação, alimentado as células do sistema imunitário, do intestino, fígado e rins.
Comparando as concentrações plasmáticas em repouso em atletas de diferentes desportos, Hiscock verificou variações muito acentuadas. Os ciclistas apresentaram os maiores valores e os menores foram observados em
powerlifters. Curiosamente, a referida equipa, e outras depois dela, verificaram uma correlação inversa entre os níveis de glutamina no sangue e o consumo de proteína dietética. A proteína alimentar parece poupar a Gln do músculo.
Após uma sessão de treino curta, a concentração plasmática de glutamina aumenta. Em eventos aeróbios mais longos, os níveis de Gln não parecem sofrer alteração. No entanto, em desportos extenuantes como uma maratona, a glutamina no sangue pode diminuir até 25%. Num estudo posterior, confirmou-se que a Gln plasmática aumenta inicialmente, mas que após 3.75 h tem uma diminuição de 17%. Este decréscimo após exercício de longa duração parece ocorrer em paralelo com uma diminuição no número de linfócitos em circulação. Sabe-se que o treino à exaustão estimula a apoptose destas células.
Após um treino de resistência muscular, os tecidos esforçados são invadidos por células imunes que facilitam o processo de recuperação. Com o aumento do número de células e da sua actividade, os requisitos de glutamina acrescem. É lógico pensar que nestas condições se torna útil suplementar e assegurar que os requerimentos são satisfeitos sem sacrifício do tecido muscular. Em adição a uma melhoria da função imune, a suplementação iria assegurar um balanço de azoto positivo e ter um efeito anti-catabólico.
A concentração de Gln em jejum parece decrescer na síndrome de
overtraining. Além disso, foi sugerido que a razão glutamina:glutamato é um bom indicador da tolerância ao exercício em atletas sob um programa de treino intenso. Um rácio <3.58 é comum em situações de
overtraining. O glutamato é um produto secundário do metabolismo da glutamina, não sendo estranho pensar que um aumento de glutamato plasmático ocorre em paralelo com um aumento da degradação de glutamina.
Mas o
overtraining não é o único problema que advém de uma rotina intensa. Está muito bem documentado que existe uma maior incidência de doença geral após um treino prolongado e exaustivo. Os mais relatados são infecções do tracto respiratório superior, o que sugere algum tipo de imunosupressão.
Um outro problema sobejamente conhecido entre os atletas é a disfunção gastrointestinal, com sintomas como dores abdominais, vómitos e náuseas, geralmente causados por desidratação, hipoxia ou menor fluxo sanguíneo no intestino. Os enterócitos (células do intestino) consomem avidamente glutamina e reservam para si 50-60% do fornecimento dietético. As funções da glutamina não se limitam à produção de energia e esta parece exercer um papel muito benéfico em condições de elevada permeabilidade intestinal, um problema exacerbado pelo treino de
endurance.
A vulnerabilidade dos atletas a infecções oportunistas após uma sessão intensa de exercício poderá dever-se parcialmente à diminuição da disponibilidade de glutamina no momento em que o sistema imune está mais activo. A diminuição da glutamina plasmática que se verifica após treino prolongado parece relacionar-se com a sua captação por células glutaminolíticas, nomeadamente as imunitárias.
A suplementação com glutamina tem sido intensivamente estudada, quer em determinadas condições clínicas, quer em atletas. Alguns efeitos benéficos sugeridos são uma menor incidência de infecções e melhor recuperação de doenças inflamatórias e imunes. Estudos clínicos relatam também que a ingestão de grandes quantidades de glutamina parecem prevenir a redução de glutamina muscular em pacientes com degeneração deste tecido.
Tal como foi dito anteriormente, as células intestinais reservam cerca de 50% da glutamina dietética. No entanto, uma dose de 0.1g/Kg após jejum nocturno duplica a concentração plasmática de glutamina numa janela de 30 min, retornando a níveis basais após 2 h.
A literatura é consistente em relatos de uma menor incidência de infecções em maratonistas suplementados com L-glutamina, mas Bassit observou um efeito semelhante com os BCAA. Como precursores da glutamina no músculo, os BCAA parecem conseguir manter os níveis plasmáticos de Gln. Adicionalmente, foi verificado que o consumo de hidratos de carbono afectava positivamente a resposta imune através da manutenção dos níveis de glutamina. Então, parece que o provisionamento de glutamina ou de seus precursores após uma sessão de treino prolongada pode aumentar a sua disponibilidade para as células do sistema imunitário no período crítico em que os atletas estão mais susceptíveis a infecções.
Muito mais controversos têm sido os resultados com
bodybuilders, apesar das populares aclamações de um efeito volumizador e anti-catabólico. Existem muito poucas evidências publicadas de que a glutamina seja eficaz neste desporto. É possível que a glutamina aumente de facto o turgor das células musculares. Sabe-se que o estado de hidratação celular é um importante factor que controla hormonas, stress oxidativo e expressão génica, inibindo também a degradação proteica. Welbourne observou um aumento da hormona do crescimento e bicarbonato após a ingestão oral de 2 g de glutamina. Scolapio viu que a administração de glutamina e hormona do crescimento em pacientes com síndrome do intestino curto resulta num aumento do peso corporal e menor percentagem de gordura. Apesar de ser um trabalho muitas vezes referido, o aumento de peso parece ser devido ao edema característico do tratamento com hormona do crescimento. Colker verificou um incremento de massa magra em atletas suplementados com whey, glutamina e BCAA, comparativamente àqueles que apenas tomaram whey. Infelizmente, sem um grupo suplementado apenas com glutamina, pouco podemos concluir deste trabalho. Outros autores não verificaram quaisquer efeitos de uma suplementação massiva, 45 g/dia, na performance muscular, composição corporal ou degradação proteica em indivíduos submetidos a um protocolo de treino de resistência muscular.
Em repouso, a ingestão de 5g de glutamina aumenta a sua concentração no sangue em 2.5 vezes durante 2 h. Uma vez que 50-60% fica retida no epitélio intestinal, grandes quantidades teriam de ser consumidas para se atingir uma dose efectiva. É pouco provável que a glutamina possa ter um efeito directo no aumento de massa muscular. É bem mais credível que a glutamina exógena apenas exercerá um papel positivo em condições catabólicas severas. A suplementação poderá ser benéfica na depleção transitória, de forma a restaurar os níveis fisiológicos após um stress intenso como o exercício prolongado.
Não foram relatados até ao momento problemas de toxicidade associados à suplementação com L-glutamina. No entanto, é importante salientar que a glutamina não é estável em solução e não deve ser mantida neste estado por muito tempo, nem misturada com líquidos quentes. A utilização de cápsulas ou comprimidos supera obviamente este problema.
Desta breve exposição e síntese dos resultados publicados podemos retirar algumas conclusões. A eficácia da suplementação com glutamina depende do efeito pretendido e do desporto praticado. Pode ser uma boa arma no combate à imunodepressão potenciada pelo treino prolongado extenuante e aos efeitos gastrointestinais adversos que lhe estão associados. Mas no que toca ao culturismo e ao aumento de massa muscular, não parece que possam ser retirados quaisquer benefícios de um aporte extra. Será provavelmente mais útil a suplementação com BCAA, precursores de glutamina, e conjugar os eventuais benefícios destes dois compostos. Outra opção, provavelmente melhor, é guardar o dinheiro e investir numa whey e, principalmente, numa dieta adequada que providencie uma quantidade de aminoácidos óptima para o desenvolvimento muscular.
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