Glúten: sensibilidade e permeabilidade intestinal — Parte 3
Saúde

Glúten: sensibilidade e permeabilidade intestinal — Parte 3






Esse é o terceiro e último post dessa série sobre glúten, sensibilidade e permeabilidade intestinal. Entretanto, outros textos referentes ao glúten e tópicos relacionados certamente surgirão.

Para melhor compreensão, a leitura dos posts anteriores dessa série é recomendável. Então, para quem ainda não leu, a seguir os links:

Glúten: sensibilidade e permeabilidade intestinal – Parte 1
Glúten: sensibilidade e permeabilidade intestinal – Parte 2

Agora, vamos ao estudo mais recente.

No effects of gluten in patients with self-reported non-celiac gluten sensitivity after dietary reduction of fermentable, poorly absorbed, short-chain carbohydrates [1]


O estudo

Foram recrutados pacientes com síndrome do intestino irritável, com mais de 16 anos, cujos sintomas da doença eram bem controlados com uma dieta isenta de glúten. Nenhum dos indivíduos apresentava doença celíaca, mas, por melhorarem dos sintomas a partir do consumo de uma dieta sem glúten, foram considerados como pacientes que apresentavam sensibilidade ao glúten.

O estudo foi um ensaio clínico randomizado, cruzado, duplo-cego e controlado por placebo – padrão ouro para se testar o efeito de qualquer tipo de tratamento. O termo randomizado significa que todos os pacientes foram aleatoriamente alocados para os grupos experimentais, enquanto que a expressão cruzado diz respeito ao fato de que cada indivíduo participou de cada um dos grupos experimentais  diminuindo a probabilidade de haver influência a partir de variações interindividuais. Duplo-cego refere-se ao fato de que nem os participantes e nem os pesquisadores sabiam quais indivíduos receberiam qual tipo de tratamento; para isso, pessoas não diretamente relacionadas ao estudo tiveram que acompanhar os procedimentos para, ao final do estudo, relatar quais indivíduos, em cada momento, receberam quais tipos de tratamento. Controlado por placebo significa que houve um grupo placebo no experimento, ao qual os grupos de tratamento são comparados.

Nas duas primeiras semanas, todos os 37 participantes foram instruídos a seguir uma dieta sem glúten e reduzida em FODMAPs. O termo FODMAPs (Fermentable Oligosaccharides, Disaccharides, Monosaccharides And Polyols) se refere a carboidratos e polióis (alcoóis que naturalmente apresentam gosto doce) que não são muito bem digeridos pelas nossas próprias enzimas e, por isso, ficam disponíveis para que as bactérias no nosso intestino possam fermentar essas substâncias. Essa estratégia de uma dieta com baixa quantidade de FODMAPs foi utilizada porque pacientes com síndrome do intestino irritável, como os que foram recrutados para o estudo, parecem ser mais sensíveis que pessoas normais a esses compostos [2,3,4].

Após esse período, cada paciente passou, em três momentos distintos, por três tratamentos diferentes: placebo (16 g/dia de whey protein), glúten reduzido (2 g/dia de glúten + 14 g/dia de whey protein) ou glúten elevado (16 g/dia de glúten). Cada tratamento durou 1 semana. Independente do tratamento, todos os pacientes mantiveram o restante da dieta isenta de glúten e reduzida em FODMAPs  a qual foi devidamente seguida por todos os participantes, de acordo com os dados coletados pelos pesquisadores.

Houve, ainda, um período de “re-teste”. Vinte e dois indivíduos, do total de 37, foram novamente estudados  dessa vez por 3 dias  para que o efeito dos três grupos experimentais fosse novamente testado. Essa etapa foi conduzida para testar a reprodutibilidade da fase experimental prévia que durou 1 semana. Foram utilizadas as mesmas quantidades de whey protein e glúten em cada grupo.


Resultados

A adesão a uma dieta isenta de glúten e, ao mesmo tempo, reduzida em FODMAPs diminuiu de forma significativa os sintomas nesses pacientes nas primeiras duas semanas do estudo:


Figura 1
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Como pode ser observados na figura 1, todos os pacientes melhoraram seus sintomas com uma dieta reduzida em FODMAPs. Aqueles que apresentavam piores sintomas naturalmente tiveram uma melhora mais significativa nesses sintomas (quanto maior for o valor no eixo Y, mais intensos são os sintomas na escala AVS). Com isso, é possível perceber também que, após essas duas semanas, o relato de sintomas adversos foi mais homogêneo entre os participantes.

Entretanto, como visto nas figuras 2 e 3, quando os pacientes receberam qualquer um dos tratamentos (whey, glúten reduzido + whey ou glúten elevado), praticamente todos os sintomas foram exacerbados novamente:


Figura 2
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Figura 3
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Ou seja, até mesmo o consumo de whey protein, e não apenas de glúten, foi capaz de induzir aumento nos sintomas dos participantes do estudo. Alguns dos sintomas avaliados, como visto na figura acima, foram dor abdominal, inchaço abdominal, cansaço e náusea.


Variabilidade entre os indivíduos

O desenho cruzado do estudo em questão foi essencial para se perceber diversos fatores importantes para explicar os resultados encontrados nesse estudo.

Alguns pacientes que apresentaram muitos sintomas com o consumo de glúten na fase de 1 semana do estudo apresentaram menos sintomas após o “re-teste” de 3 dias. E o contrário também aconteceu: alguns pacientes que apresentaram poucos sintomas na fase de 1 semana, com o consumo de glúten, apresentaram mais sintomas no “re-teste” de 3 dias. Ao mesmo tempo, alguns pacientes que apresentaram sintomas com o consumo de whey protein, durante a fase de 1 semana, deixaram de apresentar parte dos mesmos sintomas durante o “re-teste” de 3 dias.


Figura 4
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Além disso, segundo os próprios pesquisadores, a primeira fase de 1 semana do tratamento pode ter sido muito estressante para os pacientes, devido aos inúmeros testes aos quais foram submetidos em cada um desses 7 dias. Tal rigorosidade sobre os participantes pode ter contribuído para que os sintomas se exacerbassem ou para que um possível efeito nocebo surgisse. E, na minha opinião, toda a variabilidade observada nesse estudo, junto aos resultados relativamente bastante conflitantes também observados no estudo anterior do mesmo grupo de pesquisadores [5], é muito provável que um efeito nocebo de fato tenha ocorrido em ambos os estudos. Além dos resultados em si já serem de difícil interpretação, a elevada probabilidade de um efeito nocebo dificulta ainda mais a correta visualização e explanação do real efeito do glúten e dos FODMAPs em indivíduos diagnosticados com sensibilidade ao glúten.

De qualquer maneira, individualmente falando, muitos pacientes não tiveram seus sintomas exacerbados com o consumo do glúten. E vale ressaltar que o glúten utilizado nesse estudo não era tão “purificado” como o utilizado no estudo anterior [5]  provavelmente simulando de forma mais fidedigna o glúten como ele é consumido nos alimentos que são fonte dessa proteína.


FODMAPs

Juntando os resultados desse estudo com os obtidos no estudo prévio [5] do mesmo grupo de pesquisadores, que comentei no post anterior dessa série, o que parece mais plausível é que pacientes com sensibilidade ao glúten apresentam, na verdade, sensibilidade a FODMAPs.

Como informação adicional, os autores do estudo mencionam que alguns pacientes relataram intolerância a um (38% dos pacientes) ou mais (27% dos pacientes) alimentos que contêm FODMAPs. Tais dados possivelmente fortalecem a possibilidade de intolerância a FODMAPs, e não ao glúten, nesse grupo de pacientes. Ou pelo menos uma sensibilidade maior a FODMAPs do que ao glúten.

Entretanto, algumas ressalvas importantes:

1) Todos os pacientes desse estudo tinham síndrome do intestino irritável. Boa parte dos pacientes com essa doença apresenta intolerância a alimentos que contêm glúten. Apesar disso, certamente existem diversos pacientes sem síndrome do intestino irritável que apresentam sensibilidade a alimentos que contêm glúten. Os resultados apresentados por esse estudo devem ser colocados em contexto apenas para esse grupo de indivíduos  pelo menos por enquanto, com as evidências científicas que temos.

2) Alguns pacientes que referem ter ou que são diagnosticados com sensibilidade ao glúten apresentam sintomas diferentes daqueles que foram avaliados nesse estudo, incluindo: dor de cabeça, dor muscular, vermelhidão na pele e formigamento nas mãos e pés. Levando em consideração que a síndrome do intestino irritável é caracterizada basicamente pelos sintomas gastrointestinais referidos pelos pacientes, é possível que sensibilidade ao glúten e sensibilidade a FODMAPs sejam duas condições diferentes. Nesse sentido, pacientes com síndrome do intestino irritável podem, na maior parte dos casos, apresentar sensibilidade a FODMAPs, enquanto que outros pacientes podem de fato apresentar sensibilidade especificamente ao glúten. Não dá pra dizer ao certo, uma vez que os dois estudos que temos para nos dar ideia sobre esse assunto foram feitos com pacientes que possuem síndrome do intestino irritável.

3) É possível que o efeito do glúten em pacientes com sensibilidade a essa proteína seja dependente da quantidade de FODMAPs da dieta; ou seja, poucos FODMAPs da dieta talvez sejam insuficientes para que o glúten possa exercer efeitos adversos, enquanto que o aumento de FODMAPs na dieta faça com que o glúten seja mais reativo nessas pessoas que apresentam algum tipo de sensibilidade. Além disso, é muito provável que a maior ou menor sensibilidade a FODMAPs, dependendo do indivíduo, seja determinante para se avaliar o possível efeito “sinérgico” do glúten na sensibilidade a alimentos com glúten e/ou alimentos com FODMAPs.

4) Existe também a possibilidade de que a adoção de uma dieta reduzida em FODMAPs possa alterar a quantidade e os tipos de bactérias no intestino dos participantes da pesquisa [6,7]. Essa modificação nas bactérias do intestino (microbiota intestinal) pode ser determinante no desencadeamento de sintomas, seja pelo glúten ou por FODMAPs.


Considerações finais

Com dados conflitantes e ainda relativamente escassos, parece não ser possível dizer que a sensibilidade ao glúten, da forma como é atualmente classificada, seja de fato uma doença cujos sintomas são desencadeados especificamente pelo glúten. Ao contrário, as evidências existentes sugerem que os FODMAPs possivelmente até tenham um papel mais relevante  pelo menos em pacientes que reconhecidamente muitas vezes respondem de forma negativa ao consumo de alimentos que contêm glúten (indivíduos com síndrome do intestino irritável).

Isso não quer dizer que pacientes que apresentam sintomas com o consumo de glúten, e melhora desses sintomas com a retirada do glúten da dieta, não devam restringir o consumo de alimentos que contêm essa proteína. Muito pelo contrário, na verdade é até prudente que essas pessoas restrinjam o consumo de glúten. Até porque a principal fonte de glúten na nossa dieta, o trigo, é um alimento que também contêm FODMAPs, e que, portanto, deveria ser restringido numa dieta reduzida em FODMAPs.

Além disso, a restrição no consumo de alimentos que contêm glúten, principalmente aqueles derivados do trigo (pães, biscoitos doces e salgados, bolos e massas em geral), é que a qualidade da dieta pode aumentar de forma significativa. Isso é verdade principalmente porque os alimentos que contêm glúten normalmente são nutricionalmente muito pobres, com baixíssimas quantidades de vitaminas e minerais. E o ideal não é trocar esses alimentos por pães e bolos sem glúten, por exemplo, porque esses produtos também não apresentam uma qualidade nutricional elevada  muitas vezes contendo inúmeros aditivos químicos ou sintéticos. A substituição deve ser feita por alimentos ricos nutricionalmente, como hortaliças, tubérculos e frutas.

Por fim, o consumo e a sensibilidade ao glúten estão associados ao desenvolvimento de inúmeras outras doenças, tais como fibromialgia [8,9], autismo [10,11], diabetes tipo 1 [12,13], depressão [14,15] e ataxia [16,17]. Mais importante do que a relação entre o glúten e essas patologias é o fato de que a restrição no consumo de glúten é capaz de melhorar os sintomas (e em alguns casos levar à remissão) em todas elas [9,10,12,15,17]  e possivelmente em diversas outras doenças relacionadas. 

Tudo isso é muito relativo e provavelmente muito variável, dependendo de cada pessoa e das características da doença. Mas se você possui alguma dessas doenças ou suspeita que o o consumo de alimentos com glúten pode estar relacionado a algum sintoma, a restrição é sempre uma alternativa que deve ser levada em consideração.




Referências

1. Biesiekierski JR, et al. No effects of gluten in patients with self-reported non-celiac gluten sensitivity after dietary reduction of fermentable, poorly absorbed, short-chain carbohydrates. Gastroenterology. 2013;145(2):320-8.e1-3.

2. Staudacher HM, et al. Comparison of symptom response following advice for a diet low in fermentable carbohydrates (FODMAPs) versus standard dietary advice in patients with irritable bowel syndrome.  J Hum Nutr Diet. 2011;24(5):487-95.

3. Ong DK, et al. Manipulation of dietary short chain carbohydrates alters the pattern of gas production and genesis of symptoms in irritable bowel syndrome. J Gastroenterol Hepatol. 2010;25(8):1366-73.

4. Gwee KA. Fiber, FODMAPs, flora, flatulence, and the functional bowel disorders. J Gastroenterol Hepatol. 2010;25(8): 1335-6.

5. Biesiekierski JR, et al. Gluten causes gastrointestinal symptoms in subjects without celiac disease: a double-blind randomized placebo-controlled trial. Am J Gastroenterol. 2011;106(3):508-14.

6. Simrén M, et al. Intestinal microbiota in functional bowel disorders: a Rome foundation report. Gut. 2013;62(1):159-76.

7. Carroccio A, et al. Non-celiac wheat sensitivity is a more appropriate label than non-celiac gluten sensitivity. Gastroenterology. 2014;146(1):320-1.

8. Rodrigo L, et al. Remarkable prevalence of coeliac disease in patients with irritable bowel syndrome plus fibromyalgia in comparison with those with isolated irritable bowel syndrome: a case-finding study. Arthritis Res Ther. 2013;15(6):R201.

9. Isasi C, et al. Fibromyalgia and non-celiac gluten sensitivity: a description with remission of fibromyalgia. Rheumatol Int. 2014. [Epub ahead of print].

10. Pennesi CM, Klein LC. Effectiveness of the gluten-free, casein-free diet for children diagnosed with autism spectrum disorder: based on parental report. Nutr Neurosci. 2012;15(2):85-91.

11. Lau NM, et al. Markers of Celiac Disease and Gluten Sensitivity in Children with Autism. PLoS One. 2013 Jun 18;8(6):e66155.

12. Sildorf SM, et al. Remission without insulin therapy on gluten-free diet in a 6-year old boy with type 1 diabetes mellitus. BMJ Case Rep. 2012;2012

13. Visser J, et al. Tight junctions, intestinal permeability, and autoimmunity: celiac disease and type 1 diabetes paradigms. Ann N Y Acad Sci. 2009;1165:195-205.

14. Peters SL, et al. Randomised clinical trial: gluten may cause depression in subjects with non-coeliac gluten sensitivity - an exploratory clinical study. 

15. Carr AC, et al. Depressed mood associated with gluten sensitivityresolution of symptoms with a gluten-free diet. N Z Med J. 2012;125(1366):81-2.

16. Genius SJ, Lobo RA. Gluten sensitivity presenting as a neuropsychiatric disorder. Gastroenterol Res Pract. 2014;2014:293206

17. Hadjivassiliou M, et al. Dietary treatment of gluten ataxia. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2003;74(9):1221-4.




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