Ração Humana: um alimento com alegação de propriedade emagrecedora e reguladora da função intestinal, será que não precisa de registro na ANVISA?
Saúde

Ração Humana: um alimento com alegação de propriedade emagrecedora e reguladora da função intestinal, será que não precisa de registro na ANVISA?



A Ração Humana entrou no mercado no início do verão de 2009 e desde então tem se tornado um substituto de refeições alimentares na mesa dos consumidores com o propósito de emagrecer. Este suplemento já foi alvo de reportagem entre as principais emissoras da televisão brasileira, as quais veiculam suas propriedades funcionais emagrecedoras e reguladoras da função intestinal. Diante destas afirmações, este trabalho teve por objetivo pesquisar a regularidade sanitária destes produtos junto à ANVISA de modo a prestar um serviço informacional à população, visto que a ração humana é dispensada de obrigatoriedade de registro junto à Agência de Vigilância Sanitária.

Introdução

A ração humana foi desenvolvida pela Lica Takagui Dias, fundadora da Takinutri, uma empresa de produtos naturais. Este produto entrou no mercado no início do verão de 2009 e desde então tem se tornado um substituto de refeições alimentares na mesa dos consumidores com o propósito de emagrecer. Este alimento já foi alvo de reportagens entre as principais emissoras da televisão brasileira, as quais veiculam suas propagandas sobre as propriedades funcionais emagrecedoras e reguladoras da função intestinal. Diante destas afirmações, este trabalho teve por objetivo pesquisar a regularidade sanitária destes produtos junto à Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA) de modo a prestar um serviço informacional à população, visto que a ração humana possui alegações em saúde em sua propaganda as quais precisam de comprovação diante da ANVISA segundo os critérios estabelecidos pelas RDCs 18 e 19 de 1999. Como método de averiguação, pesquisou-se nas lojas de vendas de produtos naturais (Mundo Verde), no município de Petrópolis, os rótulos dos produtos Ração Humana. Foram encontrados quatro principais produtos de venda: Ração Humana e Ração Humana Slim Active chá verde + colágeno, empresa Apiário da Serra LTDA ME, Ração Humana Light, empresa Gaiatri, (empresas localizadas em Petrópolis) e Ração Humana integral, empresa Takinutri Produtos Naturais Ltda, localizada em Curitiba. O critério observado nos rótulos foi: informação sobre o registro na ANVISA (de acordo com as RDCs 23/2000, - 278/2005 revogada pela 27/2010). Além disso, foram buscadas nos sites das empresas e/ou sites de vendas destes produtos se haviam alegações de propriedades em saúde, de acordo com as RDCs 18 e 19 de 1999. Os resultados obtidos foram – informação sobre registro na ANVISA: os produtos Ração Humana Slim Active chá verde + colágeno e Ração Humana integral colocaram no rótulo a informação de Produto Dispensado de Registro no Ministério da Saúde conforme RDC ANVISA 278/2005. Os produtos Ração Humana e Ração Humana Light não continham o informe. Em todos os sites dos produtos e/ou venda encontrou-se alguma alegação de propriedade em saúde de emagrecimento e regularização intestinal. Diante do observado, pode-se concluir que há irregularidades informacionais nos rótulos e propagandas dos produtos contrariando à segurança da saúde do consumidor preconizado pela ANVISA, diante disso permanece o questionamento, será que estes produtos não precisam de registro?.


Fundamentos Bromatológicos Anunciados

Os produtos analisados possuem como ingredientes base uma mistura de cereais integrais triturados. Cereais são membros da família das gramíneas (Poaceae ou Gramineae) e produz frutos secos com uma semente que são comumente chamados de grãos. Uma definição restrita de cereais ainda não é um consenso mundial, sobretudo quanto ao que tipo de grãos incluir como cereal. Segundo a Resolução - CNNPA nº 12, de 1978, cereais são as sementes ou grãos comestíveis das gramíneas, tais como: trigo, arroz, centeio, aveia. Estudos os quais divulgam que a ingestão de cereais integrais é protetor contra o câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade são em maioria epidemiológicos e pouca pesquisa foi conduzida na elucidação dos efeitos fisiológicos de uma dieta rica em grãos integrais (Joanne Slavin,2003). Contudo, estudos demonstram que os cereais integrais são fontes ricas de carboidratos fermentáveis, incluindo fibra alimentar, amido resistente e oligossacarídeos. Estes carboidratos não são digeridos e absorvidos pelo organismo, desta forma alcançam o cólon onde são fermentados pela microflora intestinal à ácidos graxos de cadeia curta e gases. Os ácidos graxos de cadeia curta incluem principalmente acetato, butirato e propionato, os quais têm sido relacionados com a redução do colesterol (associado à redução do pH intestinal) e com o menor risco de câncer do cólon. Além disso, carboidratos não digeridos aumentam o volume úmido e o peso seco das fezes promovendo o aumento do trânsito intestinal (Joanne Slavin,2003). Estudos epidemiológicos mostram que o risco de diabetes mellitus tipo 2 é diminuída com o consumo de grãos inteiros, através da diminuição da insulina pós-prandial com a inclusção de cereais na alimentação (Van Dam et al. 2002). Outro nutriente rico em cereais são os antioxidantes, cuja principal função é protetora do organismo por sua reação com os radicais livres. Estes atacam o DNA, lipídios e proteínas das células o que pode promover o início de diversas doenças crônicas (Miller, 2001). Os antioxidantes encontrados em cereais incluem ácidos fenólicos, flavonóides, tocoferóis e avenanthramides em aveia. Outras substâncias também são importantes para a alegação em saúde dos cereais como as Lignanas, as quais são compostos hormonais grãos que podem proteger contra doenças mediadas por hormônios (Adlercreutz & Mazur, 1997). Os fitoesteróis,
esteróis e estanóis vegetais são encontrados em sementes de oleaginosas, cereais, nozes e leguminosas. Estes compostos são conhecidos por reduzir o colesterol no soro sanguíneo (Yankah & Jones, 2001). Os ácidos graxos oléico
e linoleico são conhecidos por reduzir o colesterol sérico (McPherson
& Spiller, 1995). Apesar dos benefícios expostos acima, deve-se verificar que esses estudos têm sido principalmente conduzidos em populações ocidentais e incluíram diferentes definições de grãos integrais, já que as definições ainda não são um consenso. Nas populações ocidentais, consumo de grãos integrais normalmente vem de trigo, aveia, centeio, cevada, e milho, e, portanto, as reduções de risco estimado é mais provável associados com o consumo desses cereais. A maioria dos estudos foram realizados com os cereais íntegros, e não para os triturados como na Ração Humana. Além disso, o processamento dos cereais através da trituração promove uma maior exposição dos ácidos graxos insaturados como os oléico e linoléico, ficando estes propensos à oxidação. Em vários países, recomenda-se a ingestão de 20 a 30 g de fibra alimentar por dia (Colli et al., 2002), que não deve ser ultrapassada, pois, quando consumida em excesso, pode interferir na absorção de minerais como o cálcio e o zinco.


Legislação

As legislações utilizadas para a averiguação das conformidades dos rótulos quanto aos critérios estabelecidos no trabalho foram:

Os alimentos que apresentarem em seus dizeres de rotulagem e ou material publicitário as alegações aprovadas pela ANVISA devem ser registrados nas categorias de “Alimentos com Alegações de Propriedade Funcional e ou de Saúde” ou de “Substâncias Bioativas e Probióticos Isolados com Alegação de Propriedades Funcional e ou de Saúde”. Assim, devem ter registro prévio à comercialização, conforme anexo II da Resolução RDC nº 27/2010.

RDC 23/2000 - Estabelecer procedimentos básicos para o registro e dispensa da obrigatoriedade de registro de produtos pertinentes à área de alimentos.
2.1. Registro: é o ato legal que, cumpridos os procedimentos descritos nesta Resolução, reconhece a adequação de um produto à legislação vigente, formalizado por meio de publicação no Diário Oficial da União;
2.2. Dispensa da obrigatoriedade de registro: é o ato, fundamentado na legislação vigente, pelo qual se desobriga o registro de produtos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, cumpridos os procedimentos descritos nesta Resolução;
5.1.1. Os produtos do Anexo I estão dispensados da obrigatoriedade de registro no órgão competente do Ministério da Saúde.
5.1.2. As empresas devem informar o início da fabricação do(s) produto(s) à autoridade sanitária do Estado, do Distrito Federal ou do Município, conforme modelo Anexo X, podendo já dar início a comercialização.
5.1.3. A autoridade sanitária terá um prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da data da comunicação da empresa, para proceder a inspeção sanitária na unidade fabril, nos termos do item 5.1.4.
5.1.4. A realização da inspeção neste prazo dependerá, isoladamente ou em conjunto, da natureza do produto, do risco associado ao produto, da data da última inspeção e do histórico da empresa.

RDC 27/2010 – dispões sobre o Regulamento Técnico que estabelece as categorias de alimentos e embalagens isentos de registro sanitário e as categorias de alimentos e embalagens com obrigatoriedade de registro sanitário, conforme os Anexos I e II desta Resolução.

O registro de alimentos com alegações e a avaliação de novas alegações serão realizados mediante a comprovação de segurança de uso e de eficácia, atendendo aos critérios estabelecidos nas Resoluções nº 18/1999, 19/1999.

RDC 18 /1999
Art. 1º Aprovar o regulamento técnico que estabelece as diretrizes básicas para a comprovação de propriedades funcionais e ou de saúde alegadas em rotulagem de alimentos.
3.1. A alegação de propriedades funcionais e ou de saúde é permitida em caráter opcional.

RDC 19/1999 - Art. 1º Aprovar o regulamento técnico de procedimentos para registro de alimento com alegação de propriedades funcionais e ou de saúde em sua rotulagem.


Discussão


A Ração Humana não é o único alimento no mercado brasileiro o qual é eximido de registro na ANVISA. Em 9 de agosto de 2010, foi publicada no Diário Oficial da União a Resolução RDC n.º 27, que dispõe sobre categorias de alimentos e embalagens isentos e com obrigatoriedade de registro sanitário.
A norma, que entrou em vigor no dia de sua publicação, revogou a Resolução RDC n.º 278, de 22 de setembro de 2005, e o item 8.2, da Resolução n.º 23, de 2000, e aumentou a lista de alimentos isentos de registro (estes estão listados em legislações). De acordo com o Decreto Lei 986/69, todo alimento somente seria exposto ao consumo ou entregue à venda depois de registrado no órgão competente do Ministério da Saúde. Contudo, a RDC 23/2000 apresenta alguns alimentos dispensados de registro, dentre eles alimentos como a Ração Humana. Agora a RDC 27/2010 aumenta consideravelmente estes tipos de produtos. Isto gera um grande questionamento, qual a real finalidade dos registros. Segundo a própria RDC 23/2000, este seria o ato legal que, cumpridos os procedimentos descritos nesta Resolução, reconhece a adequação de um produto à legislação vigente, formalizado por meio de publicação no Diário Oficial da União. Mas quais os critérios os quais permitem que alimentos antes obrigatoriamente registrados (D.L. 986/69) agora deixem de sê-lo? Observa-se uma questão burocrática segundo a ANVISA, a diminuição dos registros irá desburocratizar o procedimento, mas segundo a diretora da ANVISA Maria Cecília isto não irá acarretar em deficiência do controle da segurança sanitária destes alimentos, os quais continuarão sobre fiscalização. Para o consumidor saber que a empresa e o produto o qual consome está de acordo com a legislação sanitária poderá consultar o comunicado de início de fabricação da empresa, assim como o sistema de notificação eletrônica de alimento. A RDC 23/2000 não diz se é obrigatória a apresentação no rótulo de informação sobre registro dos alimentos dispensados, deste modo os produtos apresentados no trabalho não estão em desacordo com a legislação vigente quanto à este quesito.
A ANVISA possui uma lista de substâncias cujas alegações em saúde já foram elucidadas, dentre elas as fibras alimentares. Alimentos que sejam propostos registro sob esta alegação não precisa comprová-la cientificamente. Diante disso, a Ração Humana é um alimento rico em fibras alimentares nas informações nutricionais dos produtos estudados as quantidade de fibras modificam-se de acordo com o produto, sendo Ração Humana 6mg/200ml, Ração Humana Slim Active chá verde + colágeno 3,4g/30g, Ração Humana Light 7,87g/30g e Ração Humana Integral 3,4g/20g. Assim sendo, de acordo com a Lista de alegações de propriedade funcional aprovadas, a alegação de reguladora intestinal pode ser utilizada desde que a porção do produto pronto para consumo forneça no mínimo 3g de fibras se o alimento for sólido. Assim, todos os produtos se enquadram nesta determinação da ANVISA, para registro como alimento alegação de propriedade em saúde. Mas como não foi registrado estes produtos não são autorizados a colocar na sua rotulagem nem em propagandas as alegações de propriedades funcionais emagrecedora e reguladora intestinal, mesmo sendo estas benéficas à saúde.
Outro fator de confundimento é o nome da mistura de cereais - Ração Humana – esta gera a idéia de fornecer tudo que o organismo precisa em um só produto assim como oferecem os fabricantes de comida para animais, podendo deste modo substituir refeições. Contudo, esta não é realidade uma vez que este produto não oferece todos os nutrientes necessários ao bom funcionamento do organismo humano, uma vez que no rótulo apenas há tabela de nutrição informacional obrigatória destes produtos. As recomendações diárias nutricionais estabelecidas em tabelas pela (FNB) Food and Nutrition Board da National Research Council (NRC) da Academia nacional de Ciências do Estados Unidos, mostra que o ser humano depende de vários nutrientes dependendo da idade e gasto energético. Deste modo, a Ração Humana pode complementar uma alimentação saudável, mas não substituí-la.

Conclusão

Diante dos fundamentos bromatológicos observados, os cereais são importantes constituintes para uma alimentação saudável. E por isso são considerados alimentos os quais impactam a saúde da população. Os pacientes que necessitam regularizar o intestino, obesos, hipercosterolêmicos, cardíacos ao recorrerem a estes produtos no mercado optam não apenas á um alimento, mas levam um remédio para seu problema de saúde. Assim, alimentos como Ração Humana necessitam ser devidamente fiscalizados pela ANVISA, principalmente quanto à sua propaganda. Desta forma, observam-se algumas falhas de regulamentação e fiscalização da ANVISA quanto à Ração Humana, será que este órgão dará conta de fiscalizar produtos não registrados como estes?



Referências Bibliográficas

ANVISA, RDC 18/1999
ANVISA, RDC 19/1999
ANVISA, RDC 23/2000
ANVISA, RDC 278/2005
ANVISA, RDC 27/2010
ANVISA, CNNPA, 12/1978
ANVISA, Decreto Lei 986/1969

Joanne Slavin. Why whole grains are protective: biological mechanisms. Proceedings of the Nutrition Society – 62, 129-134. 2003.

Van Dam RM, Rim EB, Willet WC, Stampfer MJ e Hu FB. Dietary patterns and risk for type 2 diabetes mellitus in US men. Annals of Internal Medicina – 163, 201-209. 2002.

Miller G. Whole grain fiber and antioxidants. In CRC Handbook of Dietary Fiber in Human Nutrition. 453-460. 2001.

Adlercreutz H, Fotsis T, Bannwart C, Hamalainen E, Bloigu A e Ollus A. Urinary estrogen profile determination in young finnish vegetarian and omnivorous women. Journal of Steroid Biochemistry – 24, 289-296. 1986.

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